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Algumas vezes eu poderia ser mais responsável que ela, mesmo sendo meio rebelde.

-     Levarei você para casa para juntar suas coisas. –olhei-a desesperada.

Eu não punha o pé naquele lugar desde que tudo acontecera, há quatro dias. A casa da minha avó tinha sido o meu refúgio seguro, com apenas algumas mudas de roupas, pois a polícia pediu que eu não pegasse tudo, poderiam ser pistas.

Todos os objetos do meu quarto agora estavam liberados e eu poderia pegar tudo e “começar de novo”, como disse o policial, se eu quisesse. Lembro do interrogatório que fizeram, me perguntando desde coisas mais estúpidas a coisas que eu jamais saberia. O meu pai era dono de uma grande empresa de cosméticos, muito famosa fora do Brasil, e tudo sobre a empresa dele (quase tudo, já que eu sabia que as maquiagens eram muito boas) eu desconhecia. Ele não era de revelar coisas do trabalho em casa, pelo menos não na nossa frente!

– Você tem que ir pegar a suas coisas! Eu sei que será difícil, mas eu estarei com você! – Ela me apertou mais forte – E você não espera ir para Luária com essas suas poucas coisas aqui, não é mesmo?

Ah sim, como eu pude me esquecer de Luária? Uma pequena cidade no interior de Minas Gerais, onde a minha tia tinha se enfiado depois de terminar a faculdade de odontologia. Aquele lugar não tinha muito que revelar. Era uma típica cidadezinha do interior, onde é comum se ver cavalos passeando na rua! Eu tinha ido passar três dias lá no último verão e devo admitir que planejara nunca mais voltar. Estremeci com o pensamento de sair de casa e encontrar vacas pastando no terreno ao lado e comecei a considerar a idéia de pedir para ficar com a minha avó, o que certamente magoaria a tia Jé. Respirei fundo e assenti. Minha tia deu um fraco sorriso.

- Partimos amanhã de manhã\, pode se despedir de seus amigos hoje à noite. – Ao dizer isso ela me deu um beijo na testa e se levantou. Enquanto ela saia\, eu fitava o reflexo da lua na água da piscina\, vagando em pensamentos de como seria a minha vida na nova cidade.

O despertador tocou e eu tateei a mesa-decabeceira até encontrá-lo e desligá-lo. Ergui-me e me troquei sem tirar de minha cabeça que hoje eu voltaria a casa. A casa que fora cenário dos meus terríveis pesadelos e estremeci. Com um longo e pesado suspiro fui até a cozinha e me sentei para tomar café, mesmo não estando com fome. Minha tia e minha avó perceberam a minha tensão, mas nada disseram, provavelmente porque elas sabiam que eu estava assim por causa da casa. Todo o trajeto até ela foi silencioso. Eu pensava em como sentiria saudade daquela paisagem que passava pela minha janela. A “festa” de despedida ontem tinha sido triste e dolorosa. Despedir-me de meus amigos fora horrível, principalmente de Carla, que tinha visto a cena, assim como eu.

Minha tia parou o carro em frente à “mansão” Martinz e meu coração congelou tanto quanto a minha expressão. Respirei fundo antes de descer do carro e parar em frente à porta. Peguei a chave que eu guardara comigo todo esse tempo e a girei na fechadura. Senti minha tia ficar tensa enquanto eu abria a porta e entrava. A casa estava exatamente como da última vez que eu a vira, vazia. Os móveis ainda estavam ali, mas a casa parecia extremamente vazia. Suspirei pesadamente e entrei, e mais uma vez as lembranças vieram à tona. Lembrei-me de tudo. Eu parei na sala e olhei para a enorme mancha de sangue no chão. Perdi o ar por alguns segundos, então me agachei ao lado da mancha e chorei. Apertei a mão firme em minha barriga para me impedir de vomitar e quase encostei a minha testa no chão, as lágrimas caindo sobre a mancha. Só então notei uma mão sobre ela, e ergui o rosto. A minha tia também chorava, as mãos no lugar onde estivera o corpo de sua irmã. Só então notei como os rostos das duas eram parecidos. O mesmo formato dos lábios cheios, o mesmo nariz... Agora retorcidos, com a mesma careta de dor.

Não sei quanto tempo ficamos ali, mas minha tia pediu para que eu arrumasse as minhas coisas logo. Eu obedeci tocando a mancha enquanto me levantava. Juntei minhas coisas rápido, colocando todos meus pertences em sete malas (eu iria morar lá!). Antes de ir embora, peguei algumas coisas no quarto do meu irmão e mais algumas no quarto dos meus pais. Peguei todas as bijuterias e jóias da minha mãe e também algumas roupas. Pedi para minha tia ligar para a polícia e informar o que eu havia levado.

No caminho para Luária, eu pensei sobre a nova vida que teria, sobre o “recomeço” de que o policial falara. Pensei em como a minha vida tinha mudado de uma hora para outra. Quando saí de casa para ir a uma festa, tinha uma família. Quando voltei, era órfã. Mas não era só a minha vida que havia mudado. Eu não era mais a mesma. Eu tinha a impressão de que nunca mais sorriria de novo. Quando mataram a minha família, mataram um pedaço de mim também. Levaram parte da felicidade, parte do sorriso, parte do amor. Eu me vingaria, não importava que fosse a última coisa que eu fizesse. Não sei se tenho um instinto assassino o suficiente para matar, jamais me rebaixaria a tal nível, mas tenho instinto para me vingar. E eu me vingaria. Provavelmente prendendo o cafajeste que me matou junto com minha família. Sinceramente, não me importa como, apenas que eu faça.

No dia da morte dos meus pais, a Melissa Martinz morreu, mas se ergueu no seu lugar uma nova Melissa, uma Mel melhor e mais inteligente, mais esperta e definitivamente, mais infeliz. Uma Melissa que não tem mais capacidade de amar. Uma Melissa... Mudada.

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Comments

Arésia Pires

Arésia Pires

que estranho as 2 histórias de ler e áudio são a msm só muda os nomes dos personagens 🤔🤔🤔🤔

2024-11-20

0

Bernadete Lopes

Bernadete Lopes

Dói só de imaginar.

2023-12-06

1

Amanda

Amanda

😢😢😢

2023-08-10

0

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