Tropelias de um Rei do Cangaço agora sem coroa

Tropelias de um Rei do Cangaço agora sem coroa, sem bando e sem cabeça.

O caso de Pernambuco chegava a ser doloroso, diante de um passivo de

duas décadas de luta, ao preço de dezenas de vidas sacrificadas e de

milhares de contos de réis despendidos na campanha.

Cantoria iniciada, impõe-se enaltecer o valor guerreiro da vítima e

aquilatar esse mérito indiscutível quando posto em cotejo com a orientação

moral dada pelo cangaceiro à sua existência, tudo confluindo para o

propósito que se apossava de todos: o de consagrar as armas alagoanas com

maior propriedade. Vem o mote, apregoado por Villela para toda a sala:

“Apagaram o Lampião”. O bardo de Viçosa não decepciona. Os repentes

vão saindo com a espontaneidade que lhe era própria, o copista pelejando

para prender tudo no papel:

De muitos anos atrás

Que o nosso sertão sofria

De uma fera bravia

Com os seus leões: voraz!

Tirou do sertão a paz,

Plantou a conflagração,

Estragou todo o sertão

Essa fera horrenda e bruta,

Com vinte anos de luta,

Apagaram o Lampião...

O Lampião se acendeu,

Todo o sertão pegou fogo,

Outro mais terrível jogo

Nunca houve igual ao seu.

Dizem que agora morreu

Pro bem da população,

Findou-se aquele dragão,

Pela força alagoana,

Graças à mão soberana,

Apagaram o Lampião.

Chegou muito telegrama,Contando esse ocorrido,

Que Lampião, com os bandidos,

Perderam a vida e a fama.

Acabou-se a cruel chama,

Findou-se a conspiração,

Haja festa no sertão,

Dê vivas toda pessoa,

Que a polícia de Alagoas

Apagou o Lampião.

Lá no estado de Sergipe,

Ele sempre se escondia,

Mas, quando Deus quer, um dia,

Não há mal que não dissipe.

Quem souber, me participe

Como apagaram o vulcão,

Se foi Deus, com sua mão,

Que mandou a trovoada,

Com uma chuva de rajada,

Apagar o Lampião.

Eu agora estou ciente

Que isso por Deus foi mandado:

Anjos, em vez de soldados,

Um santo, em vez de um tenente,

Agarraram ele de frente

Sem ter dele compaixão,

Com raio, corisco e trovão,

Fuzilaria e rajada,

Nessa horrenda trovoada,

Apagaram o Lampião.

Nunca mais há de acender

O tal Lampião falado,

Na capital do estado,

Sua cabeça se vê,

Pro Governo conhecer,

Sua terrível feiçãoE dizer: este é o dragão,

Forte, cruel e valente,

Porém, mandei minha gente

E apagaram o Lampião!

O mote desdobrava título de artigo de Bastos Tigre, nome de guerra de

Manoel Bastos Tigre, publicitário premiado, satírico incorrigível, poeta,

compositor, humorista e filósofo do cotidiano, reproduzido na imprensa de

todo o país, na virada de julho para agosto de 1938 – nossa fonte sendo o

diário O Imparcial, de Salvador, Bahia, edição de 2 de agosto, para quem

desejar ler o escrito por inteiro – em que o precursor de Millôr Fernandes

alertava os nordestinos para os malefícios que estariam por se abater sobre a

região, em decorrência de estar chovendo na caatinga e de Lampião ter sido

morto. Bem ao seu estilo, fechava o artigo “Apagou-se Lampião” com

palavras de denúncia sobre duas reivindicações que vinham expondo

cronicamente o Nordeste à censura da opinião pública nacional, em vista da

recorrência com que eram brandidas sobre o país, apontadas pelo articulista

como pés de cabra para arrancar verbas públicas: a “indústria da seca” e a

“indústria do cangaço”.

“Para o Brasil, o banditismo e a seca são males necessários”, abria

Tigre, sem esconder a que vinha. “Ai do sertão se os dois fenômenos

desaparecessem totalmente!”, aumentava o mistério, esclarecendo com uma

pergunta: “Sem seca para combater e sem bandidos a perseguir, quem se

lembraria nas capitais de que o sertão existe?”. Vinha a ilustração: “Como

esses mendigos de porta de igreja, que ‘cultivam’ a chaga da perna para que

não feche, assim deve o sertão cultivar a seca e alimentar discretamente o

cangaço, porque eles é que lembrarão às gentes do litoral a necessidade de

tocar para o oeste a locomotiva civilizadora”. A carga maior de ironia

ficava reservada para o fecho do artigo, à guisa de advertência: “Chove no

Nordeste e foi morto Lampião, vocês, sertanejos, precisam tomar as

providências: as coisas não vão indo bem...”.

O livro que se vai ler é estudo que nos tomou muitos anos sobre a mortede Lampião, porventura o assunto mais controvertido da história do

cangaço, com uma dezena de publicações a respeito. Escritos valiosos, na

maioria, mas que deixam em aberto boa parte do complexo de causas

sociais, econômicas, políticas e até tecnológicas que confluíram para o

desfecho de 1938. A deficiência provindo, em dose maior, da ideia

entranhada na região de que todos os acontecimentos do cangaço possam

encontrar explicação bastante no próprio universo sertanejo. Suficientismo

de vistas baixas que nos remete para o caso do historiador que malha em

ferro frio sobre a história do Brasil por não conhecer a de Portugal.

Cada tópico do episódio que ecoou mundo afora se abre em armadilha

para o pesquisador, a ponto de nos trazer à mente verso com que outro

repentista extraordinário, Pinto do Monteiro, converteu a si mesmo na

imagem do perigo, fazendo uso de cores bem sertanejas:

Eu sou um pé de cardeiro

Na beirada do riacho,

Com um arapuá por cima

E um rolo de cobra embaixo,

Um mangangá se arranchando:

Só vem a mim quem for macho!

O quadro é preciso nas tintas. Reproduzi-lo aqui vale por homenagem

deliberada do autor deste livro àqueles que se debruçaram sobre o tema com

a coragem de enfrentar-lhe a complexidade, arrostando paixões que se

inflamam a cada ano decorrido do acontecimento. Paixões que, longe de

arrefecer, parecem cristalizar-se em desafio permanente, convertendo o

tema em campo minado. A despeito do comentário, tivemos o cuidado de

não fazer tábua rasa de nenhuma dessas fontes escritas, do que dá prova a

bibliografia ao final. A todas analisamos demoradamente. Demora de anos.

As obras que chegaram ao “cardeiro” e as que deste sequer se aproximaram.

Não nos surpreendem as dificuldades enfrentadas por seus autores.

Afinal, debruçaram-se sobre um mito em vida, que a morte não fez senão

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