Capítulo um
Enquanto estou aqui sentada, com um pé em cada lado do parapeito, observando
as ruas de Boston a doze andares abaixo, pensar em suicídio é inevitável.
Não no meu. Gosto o suficiente de minha vida para querer vivê-la.
Estou pensando em outras pessoas e em como decidem simplesmente
acabar com a própria vida. Será que elas se arrependem em algum momento? No
instante depois de se jogar, e no segundo antes do impacto deve haver algum
remorso durante aquela breve queda livre. Será que veem o chão se aproximando
depressa e pensam: Ah, que droga, que ideia péssima!
Por algum motivo, acho que não.
Penso muito na morte. Ainda mais hoje, considerando que acabei de —
doze horas antes — fazer um dos discursos fúnebres mais épicos que o povo de
Plethora, no Maine, já testemunhou. Tudo bem, talvez não tenha sido o mais
épico, mas poderia muito bem ser o mais desastroso. Acho que depende se a
pergunta for feita para mim ou para minha mãe. Minha mãe, que provavelmente
vai passar um ano inteiro sem falar comigo depois de hoje.
Não me entenda mal: meu discurso fúnebre não foi tão marcante a ponto de
entrar para a história, como o de Brooke Shields no funeral de Michael Jackson.
Ou o da irmã de Steve Jobs. Ou o do irmão de Pat Tillman. Mas foi épico à
própria maneira.
No início, fiquei nervosa. Afinal, era o funeral do extraordinário Andrew
Bloom. Prefeito idolatrado de minha cidade natal: Plethora, no Maine. Dono da
agência imobiliária de maior sucesso da cidade. Marido da idolatrada Jenny
Bloom, a mais reverenciada professora auxiliar de toda Plethora. E pai de Lily
Bloom, aquela garota estranha, de excêntrico cabelo ruivo, que certa vez se
apaixonou por um mendigo e envergonhou toda a família.
Eu sou Lily Bloom, e Andrew era meu pai.
Assim que terminei o discurso fúnebre, peguei um voo para Boston e
sequestrei o primeiro telhado que encontrei. Mais uma vez, não porque sou
suicida. Não tenho nenhum plano de saltar deste telhado. Só precisava de ar
fresco e silêncio, nada mais. Algo impossível de conseguir em meu apartamento
no terceiro andar, sem acesso ao telhado, e morando com uma garota que adora
se ouvir cantando.
Porém, não pensei em como estaria frio aqui em cima. Não está
insuportável, mas também não está nada confortável. Pelo menos dá para ver as
estrelas. Pais falecidos, irritantes colegas de apartamento e discursos fúnebres
questionáveis não parecem nada mal quando o céu noturno está límpido o
suficiente para, literalmente, espelhar o esplendor do universo.
Amo quando o céu me faz sentir insignificante.
Estou gostando desta noite.
Bem... vou reformular a frase para que ela reflita meus sentimentos de
maneira mais apropriada, no passado.
Eu estava gostando desta noite.
Mas, para minha infelicidade, a porta foi aberta com tanta força que quase
esperei ver a escada cuspir um humano no telhado. A porta se fecha novamente,
e passos se movem com pressa pelo piso. Não me dou o trabalho de erguer o
olhar. Seja quem for, é muito provável que nem me perceba em cima do
parapeito à esquerda da porta. A pessoa saiu com tanta pressa que não será culpa
minha se presumir que está sozinha.
Suspiro baixinho, fecho os olhos e encosto a cabeça na parede de estuque
atrás de mim, xingando o universo por ter me tirado o momento introspectivo de
paz. O mínimo que o universo pode fazer é garantir que seja uma mulher, não
um homem. Se vou ter companhia, prefiro uma mulher. Sou durona para meu
tamanho, e provavelmente consigo me virar sozinha na maior parte das
situações, mas estou relaxada demais para ficar sozinha com um desconhecido
no telhado, tarde da noite. Temo pela minha segurança e sinto que preciso ir
embora, mas não queria ir. Como disse... estou relaxada.
Finalmente permito que meus olhos percorram o trajeto até a silhueta
inclinada por cima do parapeito. Infelizmente, tenho certeza de que é um
homem. Mesmo naquela posição, noto que é alto. Ombros largos criam grande
contraste em relação à maneira frágil como ele apoia a própria cabeça nas mãos.
Mal percebo o pesado subir e descer de suas costas enquanto ele inspira fundo,
para exalar com força em seguida.
Parece à beira de um colapso. Considero dizer alguma coisa, ou pigarrear,
para alertá-lo de que tem companhia, mas, antes que eu o faça, ele gira e chuta
uma das cadeiras do terraço.
Eu me retraio quando o móvel arranha o telhado, mas, como ele não
imagina ter plateia, não para com um só chute. Ele atinge a cadeira
repetidamente, sem parar. E, em vez de se render sob a força bruta daquele pé, a
cadeira apenas se afasta cada vez mais.
Aquela cadeira deve ser feita de polímero resistente à maresia.
Certa vez, vi meu pai atropelar uma mesa de jardim feita desse polímero: a
coisa praticamente riu. O para-choque amassou, mas a mesa nem arranhou.
O cara parece notar que não é páreo para um material de tamanha qualidade
porque finalmente desiste de chutar. Fica ali, perto do móvel, os punhos cerrados
nas laterais do corpo. Para ser sincera, sinto um pouco de inveja. Ele desconta
muito bem a raiva na mobília. É óbvio que teve um dia péssimo, assim como eu,
mas enquanto guardo minha frustração até ela se manifestar de forma passivo-
agressiva, ele encontra uma verdadeira válvula de escape.
Minha válvula de escape costumava ser minha horta. Sempre que eu me
estressava, era só ir até o quintal e arrancar toda erva daninha que encontrasse.
Porém, desde que me mudei para Boston, há dois anos, não tenho mais horta.
Nem terraço. Nem sequer ervas daninhas.
Talvez eu devesse investir em uma cadeira de polímero resistente à maresia.
Fico observando o rapaz mais um pouco, e me pergunto se ele não vai se
mexer. Está simplesmente parado, encarando a cadeira. Não está mais de punhos
cerrados. As mãos estão apoiadas nos quadris, e percebo que sua camisa não tem
um caimento bom no bíceps. Tem um caimento ótimo no restante do corpo, mas
seus braços são enormes. Ele começa a remexer nos bolsos até encontrar o que
está procurando, e — na provável tentativa de administrar ainda mais a raiva —
acende um baseado.
Tenho 23 anos, já terminei a faculdade e usei a mesma droga recreativa uma
ou duas vezes. Não vou julgar o rapaz por achar que precisa fumar sozinho. Mas
é esta a questão: ele não está sozinho. Só não sabe disso ainda.
Ele dá uma longa tragada no baseado e começa a se voltar para o parapeito.
Percebe minha presença ao expirar. Para de andar no instante que nossos olhares
se encontram. Sua expressão não é de susto nem de humor. Ele está a uns três
metros de distância, mas a luz das estrelas é suficiente para que eu enxergue seus
olhos observando meu corpo sem revelar um único pensamento. Esse cara sabe
esconder o jogo; estreitando os olhos e comprimindo os lábios, ele parece a
versão masculina da Mona Lisa.
— Como você se chama? — pergunta ele.
Sinto a voz no estômago. O que não é nada bom. As vozes deviam parar
nos ouvidos, mas, às vezes — não é nada comum, na verdade —, uma voz
penetra em meus ouvidos e reverbera por meu corpo. Ele tem uma dessas vozes.
Grave, confiante e um pouco parecida com manteiga.
Como não respondo, ele leva o baseado à boca e dá mais uma tragada.
— Lily — revelo, por fim.
Odeio minha voz. Pareceu baixa demais para chegar a seus ouvidos, ainda
mais para reverberar dentro de seu corpo.
O cara ergue um pouco o queixo e aponta a cabeça para mim.
— Pode descer daí, por favor, Lily?
Só quando ele pede isso percebo sua postura. Está em pé, corpo ereto, até
mesmo rígido. Quase como se estivesse nervoso, achando que vou cair. Não vou.
O parapeito tem no mínimo 30 centímetros de largura, e a maior parte de mim
está no telhado. Seria muito fácil me segurar antes de cair, sem falar que o vento
está a meu favor.
Olho para minhas pernas e, depois, para ele.
— Não, obrigada. Estou bem confortável aqui.
Ele se vira um pouco, como se não conseguisse me olhar diretamente.
— Por favor, desça. — Agora é mais uma ordem, apesar de ele ter dito por
favor. — Tem sete cadeiras vazias aqui.
— Por pouco não seis — corrijo, lembrando que ele quase assassinou uma
delas.
Ele não acha graça na resposta. Como não obedeço à ordem, ele dá dois
passos em minha direção.
— Você está a meros 7 centímetros da morte. E ela já me fez companhia
por tempo demais hoje. — Ele gesticula novamente para que eu desça. — Está
me deixando nervoso. Sem falar que isso corta meu barato.
Reviro os olhos e passo as pernas por cima do parapeito.
— Deus me livre desperdiçar um baseado. — Dou um pulo para descer e
limpo as mãos na calça jeans. — Melhorou? — pergunto, enquanto me
aproximo.
O cara expira com força, como se tivesse prendido a respiração ao me ver
em cima do parapeito. Passo por ele em direção ao lado do telhado com a melhor
vista e, no meio-tempo, não deixo de perceber como ele é incrivelmente bonito.
Não. Bonito é um insulto.
O cara é lindo. Tem as mãos cuidadas, cheira a dinheiro e parece ser bem
mais velho que eu. Seus olhos se enrugam ao me seguir, e seus lábios parecem
em bico, mesmo quando relaxados. Quando chego ao lado do prédio com vista
para a rua, eu me inclino e fico olhando os carros lá embaixo, tentando não
demonstrar minha admiração. Só pelo corte de cabelo já dá para perceber que
esse é o tipo de homem que impressiona facilmente, e eu me recuso a alimentar
seu ego. Não que tenha feito alguma coisa para me convencer de que é metido.
Porém, está vestindo uma camisa casual da Burberry, e acho que nunca estive no
radar de alguém com dinheiro para, casualmente, comprar uma dessas.
Escuto passos se aproximando atrás de mim, e ele se inclina na grade a meu
lado. De soslaio, eu o observo dar uma tragada no baseado. Após terminar, ele o
oferece, mas recuso com um gesto. A última coisa de que preciso é me drogar
perto desse cara. Sua voz já é praticamente uma droga. Meio que quero ouvi-la
de novo, então pergunto: — Então, o que aquela cadeira fez para te deixar tão
zangado?
Ele olha para mim. Quero dizer, realmente me olha. Seus olhos encontram
os meus, e ele me encara com firmeza, como se todos os meus segredos
estivessem bem no rosto. Jamais vi olhos tão escuros. Talvez eu até tenha visto,
porém parecem mais escuros quando associados a uma presença tão intimidante.
Ele não me responde, mas minha curiosidade não é facilmente saciada. Se ele
me obrigou a descer de um parapeito muito confortável e tranquilo, espero que
ele me entretenha com respostas para minhas perguntas indiscretas.
— Foi uma mulher? — pergunto. — Ela partiu seu coração?
Ele ri um pouco.
— Quem me dera se meus problemas fossem tão triviais quanto assuntos do
coração. — Ele se encosta na parede e se vira para mim. — Você mora em que
andar? — Lambe os dedos e aperta a extremidade do baseado antes de guardá-lo
no bolso. — Nunca te encontrei.
— É porque não moro aqui. — Aponto para meu apartamento. — Está
vendo aquele prédio da seguradora?
Ele semicerra as pálpebras enquanto olha na direção indicada.
— Ahã.
— Moro no prédio ao lado. É baixo demais para ver daqui. São só três
andares.
Ele se volta para mim, apoiando o cotovelo no parapeito.
— Se mora ali, por que está aqui? É o apartamento de seu namorado ou
algo assim?
Por algum motivo, seu comentário faz com que me sinta fácil. Foi óbvio
demais... uma cantada amadora. Pela aparência, sei que é mais habilidoso. Então
fico com a impressão de que ele deixa as cantadas mais difíceis somente para as
mulheres ‘merecedoras’.
— Seu telhado é legal — respondo.
Ele ergue a sobrancelha, esperando que eu explique melhor.
— Eu queria tomar ar fresco. Um lugar para pensar. Abri o Google Earth e
encontrei o prédio com um terraço decente mais próximo.
Ele me olha sorrindo.
— Pelo menos você é econômica — comenta. — Essa é uma boa
qualidade.
Pelo menos?
Assinto, porque sou mesmo econômica. E essa é mesmo uma boa qualidade.
— Por que estava precisando de ar fresco? — pergunta ele.
Porque enterrei meu pai hoje, fiz um discurso fúnebre epicamente
desastroso e agora sinto como se não conseguisse respirar.
Eu me viro para a frente de novo, expiro lentamente.
— A gente pode ficar um pouco em silêncio?
Ele parece aliviado com o pedido. Inclina-se por cima do parapeito e deixa
o braço se balançar enquanto olha a rua. Ele fica assim por um instante, e eu o
encaro durante todo o tempo. Provavelmente sabe que o estou observando, mas
parece não se importar.
— Um cara caiu daqui no mês passado — revela ele.
Eu até teria me irritado por ele ter desrespeitado meu pedido de silêncio,
mas fico um pouco intrigada.
— Foi acidente?
Ele dá de ombros.
— Ninguém sabe. Aconteceu no fim da tarde. A esposa contou que
preparava o jantar quando o marido subiu para tirar fotos do pôr do sol. Ele era
fotógrafo. Acham que estava se inclinando por cima do parapeito para tirar uma
foto do horizonte, e acabou escorregando.
Olho por cima do parapeito, me perguntando como alguém se coloca em
uma situação com risco real de acidente, mas então me lembro de que estava
sentada no parapeito do outro lado do teto há apenas alguns minutos.
— Quando minha irmã me contou o que aconteceu, fiquei pensando se ele
tinha conseguido a foto ou não. Torci para que a câmera não tivesse caído
também, porque teria sido o maior desperdício, sabe? Morrer por causa do amor
pela fotografia, mas sem conseguir a foto que custou sua vida.
O pensamento me faz rir, mas não sei se devia achar graça.
— Você sempre diz exatamente o que pensa?
Ele dá de ombros.
— Para a maioria das pessoas, não.
Isso aumenta meu sorriso. Fico feliz em saber que, mesmo sem me
conhecer, por algum motivo ele não me considera a maioria das pessoas.
Ele apoia as costas no parapeito e cruza os braços.
— Você nasceu aqui?
Balanço a cabeça.
— Não. Eu me mudei do Maine depois da formatura.
Ele enruga o nariz, o que é meio sensual. Ver esse homem — usando uma
camisa da Burberry e com um corte de cabelo de duzentos dólares — fazendo
careta.
— Então está no purgatório de Boston, é? Deve ser péssimo.
— Como assim? — pergunto.
Ele retorce o canto da boca.
— Os turistas a tratam como nativa, enquanto os nativos a tratam como
uma turista.
Rio.
— Uau! Que descrição mais precisa.
— Estou aqui há dois meses. Nem cheguei ao purgatório ainda, então está
se saindo melhor que eu.
— Por que veio a Boston?
— Minha residência. E minha irmã mora aqui. — Ele bate o pé. — Bem
aqui embaixo, na verdade. Casou com um especialista em tecnologia daqui de
Boston, e eles compraram o último andar.
Olho para baixo.
— O último andar inteiro?
Ele confirma com a cabeça.
— O filho da mãe é um sortudo que trabalha de casa. Nem precisa tirar o
pijama e ganha mais de sete dígitos por ano.
É mesmo um filho da mãe sortudo.
— Que tipo de residência? Você é médico?
Ele assente.
— Neurocirurgião. Falta menos de um ano para terminar a residência,
depois disso é oficial.
Estiloso, eloquente e inteligente. E fuma maconha. Se fosse uma questão do
vestibular, eu perguntaria qual alternativa não combina com as outras.
— E médicos deviam fumar maconha?
Ele abre um sorriso irônico.
— Provavelmente não. Mas, se a gente não se desse esse luxo de vez em
quando, juro que o número de médicos pulando desses parapeitos seria bem
maior.
Ele está virado para a frente de novo, apoiando o queixo nos braços. Está de
olhos fechados, como se aproveitasse o vento no rosto. Assim, não parece tão
intimidante.
— Quer saber de algo que só quem mora em Boston sabe?
— Claro — responde ele, voltando a atenção para mim.
Aponto para o leste.
— Está vendo aquele prédio? Com o teto verde?
Ele assente.
— Há um prédio atrás dele, na rua Melcher. Tem uma casa em cima do
prédio. Tipo, uma casa mesmo, construída bem no teto. Não dá para ver da rua, e
o prédio é tão alto que poucas pessoas sabem disso.
Ele fica impressionado.
— Sério?
Confirmo com a cabeça.
— Vi quando estava procurando no Google Earth, então pesquisei o local.
Pelo visto concederam uma licença para a construção em 1982. Deve ser muito
legal, não acha? Morar em uma casa no topo de um prédio.
— O telhado seria todo seu — argumenta ele.
Eu não tinha pensado nisso. Se eu fosse dona do telhado, poderia ter hortas.
Eu teria uma válvula de escape.
— Quem mora lá? — pergunta ele.
— Ninguém sabe. É um dos grandes mistérios de Boston.
Ele ri e depois me olha com curiosidade.
— Qual seria outro grande mistério de Boston?
— Seu nome.
Assim que digo isso, dou um tapa na própria testa. Soou como uma cantada
muito brega, e tudo o que posso fazer é rir de mim mesma.
Ele sorri.
— É Ryle — revela ele. — Ryle Kincaid.
Suspiro, me encolhendo.
— Que nome incrível.
— Por que isso a deixou triste?
— Porque eu faria de tudo para ter um nome legal.
— Não gosta de Lily?
Inclino a cabeça e ergo a sobrancelha.
— Meu sobrenome é... Bloom, florescer em inglês.
Ele fica em silêncio. Sinto que tenta não demonstrar piedade.
— Eu sei. É péssimo. É o nome de uma menina de 2 anos, não de uma
mulher de 23.
— Uma menina de 2 anos sempre vai ter o mesmo nome,
independentemente da idade. Nós não nos livramos do nome quando
envelhecemos, Lily Bloom.
— Que pena — rebato. — Mas o pior é que adoro jardinagem. Amo flores.
Plantas. Cultivar coisas. É minha paixão. Sempre foi meu sonho abrir uma
floricultura, mas tenho medo de que as pessoas não julguem uma vontade
autêntica. Pensem que só estou tentando me aproveitar de meu nome, que ser
uma florista não é o trabalho de meus sonhos.
— Pode ser — comenta ele. — Mas por que isso importa?
— Acho que não importa. — Noto que estou sussurrando. — Lily Bloom.
— Eu o vejo abrir um sorriso. — É um ótimo nome para uma floricultura. Mas
tenho mestrado em administração. Seria dar um passo atrás, não acha? Trabalho
para a maior empresa de marketing em Boston.
— Ser dona do próprio negócio não é dar um passo atrás — argumenta ele.
Ergo a sobrancelha.
— A não ser que dê errado.
Ele assente, concordando.
— A não ser que dê errado — concorda. — E qual seu nome do meio, Lily
Bloom?
Resmungo, e ele se anima com isso.
— Quer dizer que é ainda pior?
Apoio a cabeça nas mãos e faço que sim.
— Rose?
Balanço a cabeça.
— Violet?
— Quem me dera. — Eu me contraio e murmuro. — Blossom. Desabrochar
em inglês.
Há um momento de silêncio.
— Caramba! — exclama ele, baixinho.
— Pois é. Blossom era o sobrenome de solteira de minha mãe, e meus pais
acharam que os sobrenomes sinônimos eram um sinal do destino. Então claro
que, quando nasci, quiseram me dar um nome de flor.
— Seus pais devem ser uns babacas.
Um deles é. Era.
— Meu pai morreu esta semana.
Ele olha para mim.
— Ah, tá. Não vou cair nessa.
— Estou falando sério. Por isso vim até aqui hoje. Acho que eu estava
precisando chorar um pouco.
Ele fica me encarando por um instante, desconfiado, para ter certeza de que
não o estou enganando. Mas não se desculpa pela gafe. Em vez disso, os olhos
ficam um pouco mais curiosos, como se ele estivesse realmente intrigado.
— Vocês eram próximos?
Que pergunta difícil. Apoio o queixo nos braços e volto a olhar a rua.
— Não sei — respondo, dando de ombros. — Como filha, eu o amava. Mas
como ser humano, eu o odiava.
Sinto que ele continua me observando, depois diz:
— Gosto disso. De sua sinceridade.
Ele gosta de minha sinceridade. Devo estar corando.
Ficamos em silêncio por mais um tempo, até que ele pergunta:
— Você às vezes deseja que as pessoas fossem mais transparentes?
— Como assim?
Ele passa o polegar em um pedaço de estuque descascado até soltá-lo. Dá
um peteleco, jogando-o por cima do parapeito.
— Sinto que todo mundo finge ser quem é, que, no fundo, somos todos
igualmente ferrados. Alguns apenas escondem isso melhor que os outros.
Ou ele está ficando meio chapado, ou é muito introspectivo. Seja como for,
acho bom. Minhas conversas preferidas são as sem nenhuma resposta real.
— Não acho um pouco de reserva ruim — avalia Lily. — Nem sempre as
verdades nuas e cruas são bonitas.
Ele me encara por um instante.
— Verdades nuas e cruas — repete ele. — Gostei disso.
Ele se vira e vai até o meio do telhado. Ajeita o encosto de uma
espreguiçadeira atrás de mim e depois se acomoda ali. É reclinável, então ele
põe as mãos atrás da cabeça e observa o céu. Vou para a do lado e me ajeito até
ficar na mesma posição.
— Me conte uma verdade nua e crua, Lily.
— Sobre o quê?
Ele dá de ombros.
— Não sei. Algo de que você não se orgulha. Algo que me faça sentir
menos ferrado.
Ele encara o céu, esperando minha resposta. Meus olhos seguem a linha de
seu maxilar, a curva das bochechas, o contorno dos lábios. Suas sobrancelhas
estão unidas, contemplativas. Não sei o motivo, mas ele parece precisar de uma
conversa. Penso na pergunta e tento encontrar uma resposta sincera. Quando
consigo, desvio o olhar e volto a encarar o céu.
— Meu pai era violento. Não comigo... com minha mãe. Ficava tão alterado
quando brigavam que, às vezes, até batia nela. Quando isso acontecia, ele
passava uma ou duas semanas tentando recompensá-la pelo que acontecera;
comprava flores ou nos levava para jantar fora. Às vezes, ele comprava alguma
coisa para mim porque sabia como eu odiava essas brigas. Quando eu era
criança, ansiava por elas, porque sabia que, se ele batesse em minha mãe, as duas
semanas seguintes seriam ótimas. — Paro. Acho que nunca admiti isso nem para
mim mesma. — Claro que, se fosse possível, eu nunca permitiria que a
machucasse. Mas a violência era inevitável no casamento dos dois e se tornou
nosso padrão. Quando fiquei mais velha, percebi que não fazer nada também me
tornava culpada. Passei boa parte da vida o odiando por ser uma pessoa tão ruim,
mas não sei se sou melhor. Talvez nós dois sejamos pessoas ruins.
Ryle olha para mim, pensativo.
— Lily — diz ele, enfaticamente. — Não existe isso de pessoas ruins.
Todos nós somos humanos e, às vezes, fazemos coisas ruins.
Abro a boca para responder, mas suas palavras me deixam em silêncio.
Todos nós somos humanos e, às vezes, fazemos coisas ruins. Acho que isso é
verdade, de certa maneira. Ninguém é exclusivamente ruim ou exclusivamente
bom. Algumas pessoas só precisam se esforçar mais para suprimir o lado ruim.
— Sua vez — digo a ele.
Com base em sua reação, acho que não quer participar da própria
brincadeira. Ele suspira fundo e passa a mão no cabelo. Abre a boca para falar,
mas depois a fecha de novo. Fica pensando por um instante, finalmente diz: —
Vi um garotinho morrer esta noite. — A voz sai abatida. — Só tinha 5 anos. Ele
e o irmão mais novo encontraram uma arma no quarto dos pais. Enquanto o mais
novo a segurava, o revólver disparou por acidente.
Meu estômago se revira. Acho que isso já é verdade demais para mim.
— Quando ele chegou à mesa de cirurgia, não dava para fazer mais nada.
Todo mundo ao redor, as enfermeiras, os outros médicos... todos sentiram muita
pena da família. “Coitados dos pais”, disseram. Mas, quando fui até a sala de
espera dar a notícia aos dois, não senti um pingo de pena. Eu queria que
sofressem. Queria que sentissem o peso de sua ignorância ao deixar uma arma
carregada ao alcance de crianças inocentes. Queria que entendessem que, além
de perder um filho, tinham arruinado a vida do que puxou o gatilho.
Meu Deus. Eu não estava preparada para algo tão pesado.
Nem consigo imaginar como uma família supera uma coisa assim.
— Coitado do irmão do garoto — comento. — Não consigo imaginar como
isso vai afetá-lo... testemunhar algo desse nível.
Ryle dá um peteleco em alguma coisa na calça jeans.
— É algo que vai destruir sua vida, é isso que vai acontecer.
Eu me viro para ele, ficando de lado e apoiando a cabeça na mão.
— É difícil? Ver essas coisas todo dia?
Ele balança um pouco a cabeça.
— Devia ser muito mais difícil, porém, quanto mais tempo passo perto da
morte, mais se torna parte da vida. Não sei como me sinto em relação a isso. —
Ele faz contato visual de novo. — Me conte outra — pede. — Acho que a minha
foi mais perturbadora que a sua.
Discordo, mas confesso a coisa perturbadora que fiz há apenas doze horas.
— Dois dias atrás, minha mãe me pediu para fazer o discurso fúnebre no
enterro de meu pai. Eu disse que não ficaria à vontade, que não conseguiria
encarar a multidão, que cairia em prantos, mas era mentira. Eu simplesmente não
queria; acho que discursos fúnebres devem ser feitos por pessoas que respeitam
o falecido. E eu não respeitava muito meu pai.
— Você fez o discurso?
Confirmo com a cabeça.
— Fiz. Hoje de manhã. — Eu me sento e puxo as pernas para debaixo do
corpo enquanto continuo, virada para ele: — Quer escutar?
Ele sorri.
— Com certeza.
Ponho as mãos no colo e respiro fundo.
— Eu não fazia ideia do que dizer. Cerca de uma hora antes do funeral, eu
avisei minha mãe de que não queria discursar. Ela pediu algo simples, disse que
deixaria meu pai feliz. Garantiu que eu só precisaria ir até o púlpito dizer cinco
coisas boas sobre meu pai. Então... foi exatamente o que fiz.
Ryle se apoia no cotovelo, parecendo ainda mais interessado. Ele nota, em
meu olhar, que a situação vai piorar.
— Ah, não, Lily. O que você fez?
— Vou reencenar.
Levanto e sigo até o outro lado da espreguiçadeira. Eu me empertigo e ajo
como se estivesse olhando para a mesma plateia com que me deparei pela
manhã. Pigarreio.
— Oi. Meu nome é Lily Bloom, filha do falecido Andrew Bloom.
Agradeço a presença de todos aqui hoje, em luto por essa perda. Eu queria
aproveitar este momento para homenagear a vida de meu pai e compartilhar com
vocês cinco coisas boas sobre ele. A primeira...
Olho para Ryle e dou de ombros.
— Foi isso.
Ele se senta.
— Como assim?
Eu me sento na espreguiçadeira e depois me deito de novo.
— Fiquei lá parada por dois minutos inteiros sem dizer mais nada. Eu não
tinha nada de bom para dizer sobre aquele homem, então fiquei encarando todo
mundo até minha mãe perceber minha intenção e pedir para meu tio intervir.
Ryle inclina a cabeça.
— Está brincando? Você fez o oposto de uma homenagem no funeral de seu
pai?
Assinto.
— Não estou orgulhosa do que fiz. Acho que não. Quero dizer, se
dependesse de mim, ele teria sido uma pessoa bem melhor, e eu falaria uma hora
sobre ele.
Ryle se deita de novo.
— Uau! — exclama ele, balançando a cabeça. — Você meio que é minha
heroína. Zombou de um falecido.
— Que coisa de mau gosto.
— Bem, a verdade nua e crua dói.
Eu rio.
— Sua vez.
— Não vou conseguir superar isso — diz ele.
— Tenho certeza de que consegue chegar perto.
— Não sei, não.
Reviro os olhos.
— Consegue, sim. Não faça eu me sentir a pior pessoa aqui. Me conte seu
pensamento mais recente, um que a maioria das pessoas não diria em voz alta.
Ele põe as mãos atrás da cabeça e me encara nos olhos.
— Quero te comer.
Fico boquiaberta. Depois me recomponho.
Acho que estou sem palavras.
Ele me olha com inocência.
— Você pediu meu pensamento mais recente, então contei. Você é linda. Eu
sou homem. Se você gostasse de sexo casual, eu te levaria para meu quarto lá
embaixo e te comeria.
Nem consigo olhar para ele. Seu comentário me faz sentir várias coisas ao
mesmo tempo.
— Bem, eu não gosto de sexo casual.
— Imaginei — diz. — Sua vez.
Ele está tão tranquilo, nem parece que acabou de me deixar sem palavras.
— Preciso de um instante para me recompor depois dessa — explico, rindo.
Tento pensar em algo que vá deixá-lo um pouco chocado, mas não consigo
esquecer o que ele acabou de dizer. Em voz alta. Talvez seja porque é
neurocirurgião; jamais imaginei alguém tão instruído falando algo vulgar de
forma aleatória.
Eu me recomponho... um pouco... e depois digo:
— Tá. Já que estamos nesse assunto... O primeiro cara com quem transei
era um mendigo.
Ele se anima e se vira para mim.
— Ah, preciso saber mais sobre essa história.
Estico o braço e apoio a cabeça ali.
— Cresci no Maine. A gente morava em um bairro bem razoável, mas a rua
de trás não estava em condições tão boas. Nosso quintal era colado a uma casa
condenada, adjacente a dois terrenos abandonados. Fiz amizade com um cara
chamado Atlas, que dormia no lugar. Ninguém sabia que ele morava ali, só eu.
Eu lhe levava comida, roupas, coisas. Até meu pai descobrir.
— E o que ele fez?
Contraio o maxilar. Não sei porque mencionei isso, já que me obrigo a não
pensar nesse assunto todos os dias.
— Bateu no cara. — Não quero mais ser nua e crua em relação ao assunto.
— Sua vez.
Ele me observa em silêncio por um instante, como se soubesse que a
história não acaba assim, mas depois desvia o olhar.
— Sinto repulsa só de pensar em casar — confessa ele. — Estou com quase
30 anos e não tenho a menor vontade de encontrar uma esposa. E principalmente
não quero filhos. A única coisa que quero na vida é sucesso. Muito. Mas, se eu
admitir isso em voz alta para alguém, vai parecer arrogância.
— Sucesso profissional? Ou status social?
— As duas coisas. Qualquer pessoa pode ter filhos. Qualquer pessoa pode
casar. Mas nem todo mundo pode ser um neurocirurgião. Tenho muito orgulho
disso. E não quero ser só um ótimo neurocirurgião. Quero ser o melhor em
minha área.
— Você tem razão. Fica parecendo arrogância mesmo.
Ele sorri.
— Minha mãe acha que estou desperdiçando minha vida no trabalho.
— Você é neurocirurgião, e sua mãe está desapontada? — Rio. — Meu
Deus, que loucura! Será que os pais jamais ficam satisfeitos com os filhos?
Nunca somos bons o bastante?
Ele balança a cabeça.
— Meus filhos não seriam. Poucas pessoas são tão determinadas como eu, e
isso só desencadearia seu fracasso. Por isso jamais vou ter filhos.
— Na verdade, acho algo digno, Ryle. Muitas pessoas se recusam a admitir
serem egoístas demais para ter filhos.
Ele balança a cabeça.
— Ah, sou egoísta demais para ter filhos. E com certeza sou egoísta demais
para me relacionar com alguém.
— Então como evita isso? Simplesmente não sai com ninguém?
Ele me olha e sorri.
— Quando tenho tempo, algumas garotas satisfazem minhas necessidades.
Não estou precisando de nada nesse departamento... se é o que está perguntando.
Mas nunca me senti atraído pelo amor. Sempre foi mais um fardo que qualquer
outra coisa.
Eu queria pensar assim. Minha vida seria tão mais fácil...
— Que inveja! Acredito que exista um homem perfeito para mim. E vivo
me decepcionando, porque ninguém corresponde a meus padrões. Parece que
estou em uma busca infinita pelo Santo Graal.
— Devia testar meu método — aconselha ele.
— Qual?
— Sexo casual.
Ele ergue a sobrancelha, como se fosse um convite.
Ainda bem que está escuro, porque meu rosto parece em brasas.
— Eu nunca conseguiria transar com alguém sabendo que não daria em
nada — argumento, em voz alta, mas minhas palavras carecem de convicção.
Ele inspira fundo e devagar, depois se deita.
— Você não é esse tipo de garota, né? — pergunta ele, um pouco
desapontado.
Também me sinto assim. Nem sei se o rejeitaria se ele tentasse alguma
coisa, mas acho que acabei de frustrar essa possibilidade.
— Se você não transaria com alguém que acabou de conhecer... — Seus olhos encontram os meus de novo. — Até onde você iria?
Não sei responder. Eu me deito porque a maneira como me olha me faz
reavaliar essa história de sexo casual. Acho que não sou necessariamente contra.
Apenas jamais recebi a proposta de alguém que me faria considerar a opção.
Até agora. Acho. E será que ele está mesmo me propondo algo? Sempre fui
péssima nesse lance de flerte.
Ele estende o braço e segura a beirada de minha espreguiçadeira. Com um
movimento rápido e pouquíssimo esforço, Ryle a puxa para perto até encostar na
sua.
Meu corpo inteiro enrijece. Ele está tão perto que sinto o calor de sua
respiração cortando o ar frio. Se eu olhasse para ele, seu rosto estaria a meros
centímetros do meu. Eu me recuso a encará-lo, porque ele provavelmente me
beijaria, e não sei absolutamente nada sobre esse homem, além de algumas
verdades nuas e cruas. Porém, isso não me pesa nem um pouco na consciência
quando ele põe a mão em minha barriga.
— Até onde você iria, Lily?
Sua voz está indecente. Gostosa. Vai direto para a ponta de meus pés.
— Não sei — sussurro.
Seus dedos começam a se aproximar da costura de minha camisa. Passam a
subir lentamente até desnudar parte de minha barriga.
— Ah, meu Deus! — murmuro, sentindo o calor de sua mão subindo pelo
estômago.
Apesar de saber que não devo, eu me viro para ele, e a expressão em seus
olhos me cativa de vez. Ele parece esperançoso, ávido e totalmente confiante.
Afunda os dentes no lábio inferior enquanto sua mão começa a explorar minha
camisa de forma provocante. Sei que ele sente meu coração batendo acelerado
no peito. Droga, deve até escutá-lo.
— Fui longe demais? — pergunta ele.
Não sei de onde está vindo esse meu lado, mas balanço a cabeça e digo: —
De jeito algum.
Com um sorriso, seus dedos roçam a parte de baixo de meu sutiã, fluindo
levemente por minha pele, que está toda arrepiada.
Assim que fecho as pálpebras, um som penetrante rasga o ar. Sua mão
enrijece quando nós dois percebemos que é um celular. O dele.
Ele encosta a testa em meu ombro.
— Droga!
Franzo o cenho quando sua mão abandona minha pele. Ele remexe no bolso
procurando o celular, se levanta e se afasta alguns metros para atender a ligação.
— Dr. Kincaid — diz ele. Escuta atentamente, agarrando a nuca. — E
Roberts? Não estou de plantão. — Mais silêncio. — Ok, me dê dez minutos.
Estou indo.
Ele encerra a ligação e guarda o celular no bolso. Ao se virar para mim,
parece um pouco desapontado. Aponta para a porta que leva à escada.
— Eu preciso...
Balanço a cabeça.
— Tudo bem.
Ele me analisa por um instante e, depois, ergue o dedo.
— Não se mexa — ordena Ryle, pegando o celular mais uma vez.
Ele se aproxima e o posiciona, como se estivesse prestes a tirar uma foto
minha. Quase protesto, mas nem sei por quê. Estou totalmente vestida. Mas por
algum motivo não me sinto assim.
Ryle tira uma foto minha: deitada na espreguiçadeira, os braços relaxados
acima da cabeça. Não faço ideia do que pretende fazer com aquilo, mas gosto do
fato de que a tirou. Gosto de saber que sentiu vontade de lembrar como sou, por
mais que imagine jamais voltar a me ver.
Observa a foto na tela por alguns segundos e sorri. Eu me sinto meio
tentada a tirar uma foto sua também, mas não sei se quero uma lembrança de
alguém que nunca mais verei. Pensar nisso é um pouco deprimente.
— Foi um prazer conhecê-la, Lily Bloom. Espero que você desafie as
probabilidades e realmente conquiste seu sonho.
Sorrio, triste e confusa em relação ao rapaz. Não sei se eu já havia
conhecido alguém assim, com um estilo de vida e uma faixa de imposto de renda
totalmente diferentes dos meus. Provavelmente nunca mais o farei. Porém,
perceber que não somos tão diferentes assim é uma boa surpresa.
Equívoco confirmado.
Ele olha para os próprios pés por um instante, parado de um jeito bastante
incerto. Como se estivesse dividido entre a vontade de dizer mais alguma coisa e
a necessidade de partir. Ele me olha uma última vez... nesse momento, seu rosto
não está impassível. Percebo o desapontamento na linha de sua boca antes de ele
se virar e seguir na direção oposta. Abre a porta, e escuto seus passos
esvaecerem enquanto ele desce a escada correndo. Estou sozinha no telhado de
novo, mas, para minha surpresa, fico um pouco triste com isso.
Capítulo Dois
Lucy — minha colega de apartamento que adora se ouvir cantando — corre
pela sala, pegando chaves, sapatos, óculos escuros. Estou sentada no sofá,
abrindo caixas de sapato repletas de coisas antigas que eu trouxe de casa. Peguei
tudo essa semana, quando voltei para o funeral de meu pai.
— Vai trabalhar hoje? — pergunta Lucy.
— Não. Estou de licença até segunda... luto.
Ela para bruscamente.
— Até segunda? — zomba ela. — Sua vaca sortuda.
— Sim, Lucy. Foi a maior sorte meu pai morrer — ironizo, claro, mas me
contraio ao perceber que na verdade não pareci tão sarcástica assim.
— Você entendeu o que eu quis dizer — murmura ela, pegando a bolsa
enquanto se equilibra em um pé e coloca o sapato no outro. — Não vou dormir
em casa hoje. Vou ficar com Alex.
Ela bate a porta ao sair.
Aparentemente, temos muito em comum; mas, além do mesmo manequim,
da mesma idade e de nomes com quatro letras, começados por L e terminados
por Y, somos só duas meninas dividindo um apartamento. Por mim tudo bem.
Além da cantoria incessante, ela é bem tolerável. É limpa e passa muito tempo
fora. Duas das qualidades mais importantes para uma pessoa que mora com
você.
Estou destampando uma das caixas quando meu celular toca. Estendo o
braço até o canto e o pego. Quando vejo que é minha mãe, afundo o rosto no
sofá e finjo chorar na almofada.
Levo o celular até o ouvido.
— Alô?
São três segundos de silêncio, depois:
— Oi, Lily.
Suspiro e me sento de novo.
— Oi, mãe.
Estou realmente surpresa por ela falar comigo. Só se passou um dia desde o
funeral. Eu esperava ter notícias só daqui a 364 dias.
— Como você está? — pergunto.
Ela suspira dramaticamente.
— Estou bem — responde. — Sua tia e seu tio voltaram para Nebraska hoje
de manhã. Vai ser minha primeira noite sozinha desde que...
— Você vai ficar bem, mãe — garanto, tentando passar confiança.
Ela fica em silêncio por tempo demais, depois diz:
— Lily. Só queria que você soubesse... não precisa sentir vergonha por
ontem.
Fico quieta. Eu não estava com vergonha. Nem um pouco.
— Todo mundo congela de vez em quando. Eu não devia tê-la pressionado
daquele jeito, ainda mais em um dia tão difícil. Devia ter pedido para seu tio
fazer o discurso.
Fecho os olhos. Lá vai ela de novo. Encobrindo o que não quer ver.
Assumindo uma culpa que nem é sua. Ela se convenceu, claro, de que fiquei
paralisada ontem, e por isso me recusei a falar. É óbvio. Penso seriamente em
confessar que não foi um erro. Não congelei. Simplesmente não tinha nada de
bom a dizer sobre o homem medíocre que ela escolheu para ser meu pai.
Mas em parte me sinto culpada pelo que fiz — especialmente porque minha
mãe não devia ter testemunhado aquilo —, então acabo aceitando sua deixa e
entro no jogo.
— Obrigada, mãe. Me desculpe por ter paralisado.
— Tudo bem, Lily. Preciso ir, preciso ir à seguradora. Amanhã teremos a
reunião sobre as apólices de seu pai. Me ligue, ok?
— Ligo, sim — respondo. — Te amo, mãe.
Encerro a ligação e jogo o celular do outro lado do sofá. Abro a caixa de
sapatos no colo e retiro o conteúdo. Bem no topo, há um coraçãozinho oco de
madeira. Passo os dedos por ele e me lembro da noite em que o ganhei. Assim
que começo a assimilar a lembrança, afasto o objeto. A nostalgia é uma coisa
curiosa.
Separo algumas cartas antigas e recortes de jornal. Embaixo de tudo,
encontro o que eu sabia estar nessas caixas. E, ao mesmo tempo, esperava que
não estivesse.
Meus Diários de Ellen.
Passo as mãos por cima das capas. São três nessa caixa, mas,
provavelmente, oito ou nove no total. Não li nenhum desde a última vez que
escrevi algo.
Quando era mais nova, eu me recusava a admitir a existência de meu diário:
era muito clichê. Em vez disso, me convenci de que eu fazia algo legal porque,
tecnicamente, não era um diário. Toda vez, eu escrevia para Ellen DeGeneres;
comecei a assistir ao programa no dia em que estreou, em 2003, quando ainda
era uma criança. Eu o sintonizava todo dia, depois da escola, e tinha certeza de
que Ellen me amaria se me conhecesse. Escrevi cartas para ela regularmente até
os 16 anos, mas na forma de diário. Claro que eu sabia que a última coisa que
Ellen DeGeneres provavelmente ia querer eram os textos de uma garotinha
qualquer. Felizmente, jamais enviei nenhum, mas gostava de escrever no diário
como se este fosse destinado a ela, então continuei fazendo isso até parar de vez.
Abro outra caixa de sapato e encontro mais cadernos. Eu os reviro até achar
o de quando eu tinha 15 anos. E o abro, procurando o dia em que conheci Atlas.
Antes disso não aconteceu muita coisa digna de nota em minha vida, mas de
alguma maneira consegui encher seis diários antes de nosso relacionamento.
Jurei que nunca mais leria essas coisas, mas com a morte de meu pai passei
a pensar muito na infância. Talvez, lendo esses diários, encontre forças para
perdoá-lo. Apesar de ter medo de acabar acumulando ainda mais ressentimento.
Eu me deito no sofá e começo.
Comments
Janaira Paixão
muito bom🤌🏽
2024-11-12
0
Lari
eu amei
2024-10-18
0
Cassielen Félix
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2024-09-08
1