Recomeço com café amargo

O cheiro de café passado e o som abafado do trânsito foram as boas-vindas de Ana à nova vida.

A kitnet de Maria Alice era pequena, mas viva — tão cheia de cor e energia que parecia respirar. Havia plantas disputando espaço nas janelas, livros empilhados em fileiras tortas sobre a mesa e uma bagunça organizada que só quem trabalha demais e dorme de menos consegue manter.

Nada ali combinava entre si, e talvez por isso tudo combinasse perfeitamente.

Maria Alice abriu a porta com um sorriso largo.

— Eu sabia que esse dia ia chegar — anunciou, apoiando a mão na cintura como uma heroína cansada. — Bem-vinda à minha humilde fortaleza da independência, senhorita Maciel.

Ana tentou sorrir, mas o cansaço e a incerteza pesavam nos ombros.

— Desculpa chegar assim, sem avisar direito. Eu... —

— Ah, por favor — interrompeu Maria, puxando a mão dela para dentro. — Aqui ninguém avisa nada. A Júlia terminou o namoro semana passada e trouxe o ex para chorar no sofá. Inês adotou um gato, um cachorro e um pombo. Eu já vi de tudo.

Ana soltou uma risada curta, meio incrédula, meio aliviada.

— Um pombo?

— É, o infeliz se chamava Cacau e ocupou o varal por uma semana. Longa história. — Maria deu de ombros. — Moral da história: bagunça é o preço da liberdade.

O apartamento tinha um quarto dividido por uma cortina, um sofá-cama que Maria jurava ser “ortopedicamente decente” e uma cozinha minúscula.

Mas havia vida ali. Calor humano. Algo que faltava em cada metro da mansão Maciel.

Por um segundo, Ana sentiu pena da mãe — sozinha com o homem que acreditava comprar amor com status. Mas fazer o quê? Casar com um estranho é que ela não ia.

— Senta aí — disse Maria, servindo café em duas canecas descascadas. — E me conta tudo.

Ana respirou fundo, observando o vapor subir da bebida.

— Não tem muito o que contar. Meu pai decidiu que eu devia casar com um homem que eu nunca vi. Eu disse não. Ele surtou. Eu saí. — Deu um gole e fez uma careta. — Acho que nunca tomei um café tão amargo.

Maria riu.

— É o sabor da vida adulta, amiga. Amargo, forte e te acorda para a realidade.

— É… — Ana suspirou, olhando ao redor. — Eu não sei se consigo, Maria. Eu nunca trabalhei. Nem sei por onde começar.

A amiga se encostou no balcão, cruzando os braços e observando-a com um olhar que misturava carinho e provocação.

— Sabe o que eu acho? Que você sempre teve potencial, só nunca precisou usá-lo.

— Potencial para quê? Para fracassar mais devagar? — ironizou Ana, mexendo na caneca.

— Não. — Maria ergueu a caneca como quem faz um brinde. — Para provar que dá conta.

Ana sorriu de canto, meio sem acreditar, meio querendo acreditar.

— Eu não sei fazer nada.

— Ótimo. Então vai aprender. — Maria deu uma piscada. — O mundo adora uma mulher que se reinventa.

O silêncio que se seguiu foi confortável, pontuado pelos sons do prédio: um cachorro latindo, uma panela batendo, alguém rindo alto no corredor. Vida real — barulhenta, imperfeita, honesta.

Maria tomou outro gole do café e observou a amiga.

— Tem uma vaga lá no escritório.

Ana levantou o olhar, surpresa.

— Escritório? Mas o que vou fazer em um escritório?

— Ela sorriu, maliciosa. — Antes que pergunte: não, não é uma vaga importante. É para fazer café, organizar os arquivos e tentar sobreviver ao chefe mais gostoso que existe na face da terra.

Ana arqueou a sobrancelha.

— Nossa, será que vou sobreviver a isso?

— Ei, emprego é emprego. E paga o suficiente para dividir o aluguel e comprar café decente — rebateu Maria. — Além disso, é um bom lugar para ver como as coisas funcionam de verdade.

Ana ficou quieta. O orgulho doía, mas o medo de depender de novo do pai doía mais.

— Eu topo. — disse por fim. — Não posso ficar aqui sem fazer nada... e ele não me deixou trazer nada.

— Temos o mesmo tamanho. — Maria abriu o guarda-roupa com um gesto teatral. — Pega o que quiser. Se couber, é seu.

Ana tocou nas roupas simples da amiga — jeans, camisetas, vestidos de algodão — e sentiu o peso simbólico do gesto. Pela primeira vez, alguém lhe oferecia ajuda sem querer nada em troca.

_ E como vamos caber nós quatro aqui?

_Elas estão viajando de férias, quando elas voltarem nós veremos, por enquanto somos só nós duas.

— Amanhã cedo iremos juntas — disse Maria, animada. — E relaxa. Lá ninguém liga se você veio de uma mansão ou de Marte.

Ana riu, mas a risada veio trêmula.

— Tomara que não liguem mesmo.

— Confia em mim. Advogado bom é aquele que não faz perguntas demais.

As duas riram. Pela primeira vez em dias, Ana se sentiu leve.

— Obrigada, Maria. Sério. — A voz dela era sincera, quase um sussurro.

— Amiga, eu sempre disse que você era mais do que uma boneca de luxo. Só faltava um empurrãozinho do destino. — Maria piscou. — No seu caso, o empurrão veio em forma de casamento arranjado e pai autoritário.

Ana deu uma gargalhada verdadeira.

— Que tragédia bem disfarçada de oportunidade, né?

— A vida é cheia dessas ironias. — Maria levantou a caneca. — Agora, vamos combinar: sem drama de novela. Nada de desistir no primeiro tropeço.

— Prometo tentar.

As duas brindaram com as canecas de café e ficaram em silêncio por um tempo. Lá fora, buzinas e risadas se misturavam à noite.

Mas ali, naquela pequena kitnet, algo se transformava. Ana Laura deu o primeiro passo da sua própria história.

Mais tarde, deitada no sofá-cama com um cobertor e o pijama de bolinhas emprestado, ela olhou o teto manchado de umidade e sorriu. A liberdade, ao contrário do que diziam, não era bonita nem confortável.

Mas era dela.

Pensou no pai — e, por um instante, no homem com quem deveria se casar. Um rosto desconhecido. Um nome que não quis ouvir.

“Que ele tenha uma vida bem longe da minha”, murmurou, antes de fechar os olhos.

Do outro lado da cidade, um certo advogado de olhos verdes ainda trabalhava. A xícara de café frio ao lado do computador, os papéis espalhados, a mente inquieta.

Ele tentava não pensar na garota que o humilhou sem nem conhecê-lo.

O destino, porém, não gosta de ser ignorado.

E já começava a alinhar os ponteiros do relógio para o encontro que mudaria a vida dos dois.

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Comments

janete B Lucchesi

janete B Lucchesi

Agora que a porca torce o rabo, que venha as confidências do destino 🤭🤭🤭🥰🥰🥰❣️

2025-10-28

1

Dulce Gama

Dulce Gama

KKK já pensou ela vai trabalhar junto com o cara que deveria ser o seu marido KKK essa foi boa gostei 🌹🌹🌹🌹🌹🎁🎁🎁🎁🎁❤️❤️❤️❤️❤️👍👍👍👍👍🌟🌟🌟🌟🌟

2025-10-29

1

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