o olhar de Lívia

No morro, notícias corriam mais rápido do que o vento. Quando alguém novo aparecia, em poucas horas já não era segredo. Lívia soube da chegada de Marina na mesma noite, enquanto caminhava para casa depois de ajudar em uma oficina de dança na ONG. Uma vizinha a parou no meio da viela:

— Tem uma moça nova aí, se instalou com a Catarina. Parece perdida.

Lívia ergueu as sobrancelhas, surpresa. No morro, ninguém simplesmente “aparecia”. E se Catarina tinha dado abrigo, é porque havia visto algo diferente na garota.

Na manhã seguinte, Lívia foi até a mercearia. Encontrou Marina atrás do balcão, organizando pacotes de feijão, e Catarina atendendo os clientes com o sorriso costumeiro. A jovem nova parecia concentrada, mas seu corpo denunciava certo desconforto, como se ainda não tivesse encontrado seu lugar.

— Você deve ser a Marina. — disse Lívia, aproximando-se com um sorriso acolhedor. — Eu sou a Lívia.

Marina sorriu de volta, tímida.

— Prazer. Eu ainda tô meio perdida por aqui…

— Isso passa. — Lívia respondeu, direta. — O morro pode ser duro, mas também acolhe. Só tem que saber se posicionar.

Enquanto conversavam, RL apareceu, o inseparável caderno debaixo do braço. Ele cumprimentou Lívia com um aceno e lançou um olhar rápido para Marina. Lívia não deixou de notar o jeito como os olhos dele se demoraram mais do que o normal.

“Hum… já entendi”, pensou, segurando um sorriso de canto. RL sempre foi focado demais nos estudos, afastado das distrações que muitos jovens do morro enfrentavam. Ver aquele brilho diferente no olhar dele a fez perceber que Marina já estava mexendo em algo além da rotina.

— Vocês dois já estão ficando amigos, pelo visto. — Lívia provocou, olhando entre eles.

RL franziu a testa.

— Nada a ver, Lívia. Só tô ajudando ela a se situar.

Marina ficou corada, mas não respondeu. Lívia percebeu o silêncio e decidiu aliviar.

— Relaxa, eu tô brincando. — disse, rindo. — Mas falando sério, Marina, se precisar de alguém pra te mostrar os caminhos, pode contar comigo também. Eu conheço cada esquina daqui.

A conversa seguiu leve, até que o barulho de uma moto ecoou pela rua. Dinho passou devagar, observando a mercearia com aquele olhar pesado que sempre deixava um rastro de tensão. Lívia percebeu que Marina se encolheu levemente, e RL fechou o semblante.

— Ele não tira os olhos dela. — Lívia murmurou, mais para si mesma.

RL respondeu de imediato:

— Ele não confia em ninguém. Sempre foi assim.

Lívia concordou, mas ficou pensativa. Ela sabia que Dinho era impulsivo, e que Zeca não deixava nada passar. A presença de Marina já estava no radar dos dois, e isso podia significar complicações.

Naquela tarde, Lívia levou Marina para caminhar pelo morro. Mostrou onde ficava a escola comunitária, a quadra onde aconteciam as festas e a sede da ONG onde trabalhava. Marina observava tudo com olhos curiosos, absorvendo cada detalhe.

— Parece um lugar cheio de vida. — disse Marina.

— É. — Lívia concordou. — Mas não se engane, vida e perigo andam de mãos dadas aqui.

Enquanto voltavam, Marina se abriu um pouco mais:

— Eu vim pra cá pra recomeçar. Preciso de um lugar onde ninguém me olhe pelo que eu deixei pra trás.

Lívia não perguntou detalhes. Aprendera que no morro, às vezes, era melhor deixar o passado quieto. Mas algo dentro dela dizia que a história de Marina não era simples.

Naquela noite, sozinha em casa, Lívia refletiu sobre o que havia visto. RL parecia diferente perto de Marina — mais protetor, mais atento. E a própria Marina, mesmo com medo, demonstrava uma força silenciosa.

“Essa garota não é comum”, pensou. “E se ela cruzou o caminho de RL, é porque alguma coisa grande tá pra acontecer.”

Do alto, a lua iluminava as vielas. E Lívia, com seu instinto aguçado, sentia que Marina não estava apenas perdida no morro… estava destinada a mexer com os alicerces daquele lugar.

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