laços no escuro

A manhã seguinte amanheceu com o barulho típico do morro: rádios tocando funk em volume alto, crianças correndo pelas vielas e vozes chamando de uma janela para outra. Marina acordou cedo, ajudando Catarina a organizar a mercearia. O trabalho simples — arrumar prateleiras, embalar pacotes — trouxe uma sensação de normalidade que ela não sentia há tempos.

— Você leva jeito, menina. — Catarina comentou, enquanto cortava pães para vender. — Aqui cada mão faz diferença.

Marina sorriu. Pela primeira vez, sentiu-se útil desde que chegara. Mas essa paz não duraria muito.

Do lado de fora, um burburinho começou a crescer. Vozes exaltadas, passos apressados, o sinal claro de que algo não estava certo. RL entrou na mercearia de repente, suado, o caderno ainda debaixo do braço.

— Fiquem aqui dentro! — disse em tom sério. — Tá rolando confusão no beco de baixo.

— O que aconteceu? — Marina perguntou, assustada.

— Briga entre dois caras que trabalham pro Dinho. — respondeu, rápido. — E quando eles brigam, todo mundo fica no meio.

Antes que pudessem reagir, um estampido ecoou no ar. O som seco e forte de um tiro fez Marina estremecer. Catarina largou os pães, correndo para fechar a porta da mercearia. RL puxou Marina pela mão e a levou para os fundos.

— Não olha pra fora, entendeu? — disse, firme, enquanto a colocava atrás de uma pilha de caixas. — Aqui é assim: às vezes explode, mas logo passa.

O coração de Marina batia como um tambor. O toque da mão de RL, quente e firme, foi o único ponto de segurança naquele momento caótico. Do lado de fora, passos corridos e gritos ecoavam, mas dentro da mercearia havia um silêncio tenso, quebrado apenas pela respiração acelerada dela.

Quando os sons começaram a se afastar, RL espiou pela fresta da porta dos fundos.

— Já estão levando a briga pro alto do morro. Melhor assim. — disse, tentando parecer calmo, mas o suor no rosto entregava a tensão.

Marina ainda tremia.

— Eu não tô acostumada com isso… — murmurou, os olhos marejados.

RL se agachou na frente dela, apoiando uma mão no ombro dela.

— Ninguém se acostuma de verdade. A gente aprende a conviver, mas nunca fica normal. — Olhou-a nos olhos, sério. — Mas você não tá sozinha.

Aquelas palavras, simples, tiveram um peso enorme para Marina. Desde que chegara, tudo parecia julgamento e desconfiança. RL, no entanto, oferecia algo diferente: uma promessa de apoio, mesmo em meio ao caos.

No restante do dia, o morro parecia ter voltado ao ritmo normal. Mas, no alto, Zeca observava. Sentado na laje, fumando em silêncio, ouviu os relatos da briga e soube que Marina havia estado por perto.

— A menina já tá no meio das confusões… — comentou, quase para si mesmo.

Dinho, ao lado, bufou.

— Eu falei, chefe. Essa garota é problema. Tá chamando atenção sem nem fazer nada.

Zeca não respondeu de imediato. Apenas manteve os olhos fixos no horizonte, como quem calcula movimentos em um jogo perigoso.

À noite, quando tudo parecia calmo, Marina saiu para pegar um pouco de ar. RL apareceu, como se já soubesse que a encontraria ali.

— Difícil dormir depois de um dia desses, né? — perguntou, encostando-se na parede ao lado dela.

— É como se eu tivesse caído em outro mundo. — Marina respondeu, olhando para o céu escuro. — Mas você… você parece saber lidar.

RL deu uma risada curta.

— Saber lidar é diferente de gostar. Eu só tento sobreviver.

Houve um silêncio breve, quebrado pelo som distante de um cachorro latindo. Marina virou o rosto e encontrou os olhos dele fixos nos dela. Por um instante, não havia morro, tiros ou medo. Apenas dois jovens tentando se entender em meio ao caos.

— Obrigada por hoje. — ela disse, sincera.

— Não precisa agradecer. — RL respondeu, baixo. — Só… confia em mim.

E naquela noite, sob o peso do silêncio e das sombras do morro, um laço começou a se formar — frágil, mas intenso, como chama que resiste ao vento.

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Leitora compulsiva

Leitora compulsiva

é lei da sobrevivência gata

2025-09-11

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