Rafael não lembrava a última vez que havia dormido direito. Seus dias eram um borrão de distrações, e as noites, uma espera silenciosa. Já não tinha dúvidas: Gabriel — o nome que ele repetia em silêncio como uma prece ou uma maldição — não era apenas uma obsessão. Era uma presença.
A marca queimava como um chamado, e cada vez que pulsava, Rafael sabia: ele estava perto.
Numa noite abafada de sexta-feira, Rafael decidiu não lutar contra aquilo. Saiu de casa, andando pela cidade sem direção, como quem segue um instinto. Os prédios ao redor pareciam mais altos, as ruas mais estreitas, e a sensação de ser observado crescia a cada passo.
Foi então que a viu. Uma igreja antiga, perdida entre os arranha-céus modernos, com portas abertas e vitrais quebrados que deixavam a luz da rua invadir o interior.
Algo o puxava para dentro.
Rafael entrou.
O ar ali era diferente: pesado, carregado de poeira e silêncio. Caminhou pelo corredor central, e quando chegou perto do altar, sentiu o coração disparar.
Ele estava lá.
De pé, diante do crucifixo gasto, com as mãos entrelaçadas atrás das costas.
Gabriel.
As sombras da igreja pareciam se curvar ao redor dele. Os olhos prateados refletiam uma luz que não vinha de lugar nenhum. Por um instante, Rafael teve a impressão de que aquele espaço sagrado era indigno de sua presença.
— Eu sabia que viria — disse Gabriel, sem virar o rosto. Sua voz ecoava pelas paredes rachadas.
Rafael engoliu em seco.
— Eu não escolhi isso.
— Nem eu. — Gabriel finalmente o encarou. — Mas a escolha já foi feita.
Rafael se aproximou, cada passo um desafio à razão. O medo se misturava ao desejo, formando algo impossível de nomear.
— Quero respostas. — Sua voz saiu firme, apesar da tensão. — O que você é?
Gabriel suspirou, e por um instante, seu rosto pareceu humano demais — cansado, ferido, como se carregasse séculos de peso.
— Já sabe a resposta, Rafael. Só não aceita.
As palavras cortaram como lâmina. Rafael estremeceu.
— Anjo. — Disse em um sussurro, como quem testa o som.
O silêncio que se seguiu foi a confirmação. Gabriel não desviou o olhar.
— Caído — corrigiu, a voz grave, carregada de dor contida. — Expulso do lugar que já foi lar. E agora condenado a vagar entre humanos, tocando-os sem nunca poder pertencer de fato.
Rafael recuou um passo, mas não conseguiu desviar o olhar.
— E por que eu? — perguntou, a voz embargada. — Por que me marcou?
Gabriel se aproximou lentamente, até que a distância entre eles fosse quase inexistente. A mão dele ergueu-se, hesitante, e desta vez tocou o rosto de Rafael. A pele queimou sob o contato, mas não de dor — de intensidade.
— Porque você me viu. — Gabriel sussurrou. — E eu não consegui virar o rosto.
Rafael estremeceu. A marca em seu braço pulsava em sincronia com o coração, e pela primeira vez, sentiu que não estava mais sozinho dentro de si mesmo.
— Isso é maldição? — perguntou, quase sem fôlego. — Ou é…
Não terminou a frase. O olhar de Gabriel dizia tudo.
— É tentação. — respondeu ele, baixinho. — E cair pode ser a única forma de se sentir vivo.
Os dois ficaram ali, parados, presos um ao outro, até o som distante de passos e vozes ecoar na rua. Gabriel recuou de repente, como se tivesse despertado de um transe perigoso.
— Ainda não. — murmurou. — Mas vai chegar o momento em que você terá que escolher.
Antes que Rafael pudesse responder, Gabriel desapareceu. Restou apenas o eco de suas palavras e a sensação de um vazio impossível de suportar.
Sozinho na igreja, Rafael caiu de joelhos diante do altar. Não sabia se rezava, se amaldiçoava ou se pedia mais.
Mas sabia de uma coisa: queria de novo aquele toque.
E já não havia volta.
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Atualizado até capítulo 40
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