O zumbido do telefone sobre o balcão de granito era um som alienígena no santuário de silêncio de Cipora. Parecia violento, uma invasão. Por três toques inteiros, ela ficou paralisada, a faca ainda na mão, o cheiro de coentro pairando no ar como uma memória fantasma. Cada vibração era um abalo sísmico em sua rotina cuidadosamente construída. A razão, sua velha e fiel carcereira, gritava ordens de dentro de sua mente: Não atenda. É um engano. É um problema. Deixe tocar. O silêncio voltará.
Mas o instinto, aquela força traiçoeira que ela passara a vida a sufocar, moveu sua mão. Era um movimento lento, hesitante, como se estivesse alcançando a cabeça de uma serpente. Seu dedo deslizou pela tela fria, e o zumbido cessou. Ela levou o aparelho ao ouvido, o coração martelando contra as costelas, um tambor de guerra anunciando uma batalha interna.
— Alô? — sua voz saiu mais baixa e frágil do que pretendia. Uma voz que não pertencia à profissional eficiente, mas à mulher assustada que se escondia por trás dela.
— Boa noite, falo com a senhorita Cipora Tavares? — a voz do outro lado era feminina, cristalina e polida. Era uma voz que não conhecia a dúvida, uma voz acostumada a dar ordens e a ser obedecida. A voz do mundo da Almeida D'Ávila Corp.
— Sim, é ela — Cipora respondeu, forçando sua voz a encontrar um tom mais firme, limpando a garganta discretamente. A performance tinha que começar.
— Meu nome é Patrícia, sou do departamento de Recursos Humanos da D'Ávila Corp. Recebemos sua candidatura para a vaga de secretária executiva e o perfil nos interessou. O Dr. D'Ávila gostaria de conhecê-la. A senhorita teria disponibilidade para uma entrevista depois de amanhã, quarta-feira, às dez da manhã?
Cada palavra era perfeitamente articulada, um tijolo sendo colocado no muro de uma nova e assustadora realidade. Não era um engano. Era real. O instinto havia vencido a primeira escaramuça. Um nó de pânico e euforia se formou em sua garganta. Dr. D'Ávila. O nome foi dito com uma reverência que sublinhava a distância entre o mundo dele e o dela.
— Sim, claro. Quarta-feira, às dez da manhã, estarei disponível — Cipora disse, surpresa com a calma que conseguiu projetar. A dança. Ela conhecia os passos dessa coreografia.
— Perfeito. O endereço consta em nosso site. Por favor, traga seus documentos e procure por mim na recepção do quadragésimo oitavo andar. Tenha uma boa noite, senhorita Tavares.
— A senhorita também. Obrigada.
A ligação terminou. O silêncio que retornou ao apartamento era diferente agora. Não era mais um silêncio de paz, mas um silêncio carregado, denso de expectativa e terror. Cipora pousou o telefone no balcão como se ele queimasse. Suas mãos tremiam. O ar parecia ter ficado rarefeito, e ela precisou se apoiar na pia, respirando fundo. A adrenalina percorria seu corpo, um veneno e um elixir ao mesmo tempo. A realidade a atingiu. Ela tinha uma entrevista. Em menos de quarenta e oito horas, ela estaria cara a cara com o mundo que sempre observou à distância.
A sensação de confinamento em seu próprio apartamento tornou-se insuportável. Ela precisava de ar, de movimento, de uma distração. Precisava se sentir normal. Lembrou-se de que não tinha pão nem café para a manhã seguinte. Uma desculpa perfeita. Vestiu um casaco simples sobre a roupa que usava e saiu, buscando refúgio na banalidade de uma tarefa cotidiana.
A rua à noite, com o ar úmido e o cheiro de asfalto molhado, a acolheu. As luzes dos postes criavam halos amarelados no chão. Na pequena padaria da esquina, o ambiente era quente e barulhento. O cheiro de pão fresco e café recém-passado era reconfortante, mas as pessoas ali pareciam pertencer a uma espécie diferente. Em uma mesa, um grupo de amigos ria alto de uma piada. Perto do balcão, um casal jovem trocava confidências em voz baixa, as mãos entrelaçadas. Uma mãe tentava, com uma paciência carinhosa, convencer o filho pequeno a não comer o doce antes do jantar.
Cipora se sentiu como uma antropóloga estudando uma tribo desconhecida. Cada gesto de afeto, cada risada espontânea, cada pequena interação parecia uma crítica silenciosa à sua existência solitária e contida. Eles não a viam, é claro. Para eles, ela era apenas mais uma cliente na fila, uma sombra esperando sua vez. Mas em sua mente, os julgamentos eram ensurdecedores. Olhe para ela, sempre sozinha. O que há de errado com ela? Por que ela parece tão séria? Eram as vozes de seus pais, de seus antigos colegas, da sociedade inteira, ecoando em sua cabeça.
— Próxima! — chamou o atendente, um rapaz com um sorriso cansado.
— Boa noite. Eu vou querer dois pães franceses e duzentos e cinquenta gramas de café moído, por favor.
Sua voz era polida, seu pedido, preciso. Ela pagou, evitou o contato visual prolongado e agradeceu com um aceno de cabeça. A interação durou menos de um minuto, mas a deixou exausta. Cada palavra, cada gesto, era parte da sua dança para parecer normal, para não chamar atenção, para ser invisível.
De volta à segurança de seu apartamento, ela guardou as compras. O pão quente e o cheiro do café eram coisas reais, concretas, em meio ao turbilhão de seus pensamentos. O pânico havia diminuído, substituído por uma ansiedade fria e persistente. A entrevista na D'Ávila Corp. não era mais apenas uma entrevista de emprego. Tornou-se um confronto. Um desafio lançado pela mulher do lenço roxo à mulher do coque apertado.
Ela parou diante do espelho escurecido pela noite na janela da sala. Não via seu reflexo claramente, apenas sua silhueta contra as luzes distantes da cidade. Pela primeira vez, não se sentiu como uma ilha. Sentiu-se como uma costa, prestes a ser atingida por uma onda que ela mesma havia convocado do oceano. E não havia para onde correr.
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Se está gostando não deixe de curtir pra mim saber e me segue no coraçãozinho, bjs.
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Atualizado até capítulo 43
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