Capítulo 4 — Quando Ninguém Está Olhando

A casa Calderon era mais barulhenta do que eu esperava. Mesmo nas horas em que tudo parecia silencioso, havia vozes abafadas, portas que fechavam com mais força do que deviam, passos apressados no corredor. Sons que só existem em casas onde há coisas demais sendo engolidas para dentro.

Depois de voltar da feira com Marina, subi direto para o quarto. Não tinha fome, e a discussão que ouvimos da varanda ainda ecoava na minha mente.

Ernesto e Lorenzo.

Duas vozes diferentes, dois pesos diferentes. O pai tentando manter o controle. O filho mais velho desafiando sem levantar a voz. Tudo soava milimetricamente contido, mas, mesmo assim, intenso demais.

Não desci para o jantar.

De novo.

Não que alguém tenha vindo perguntar por quê.

Fiquei na cama com o caderno aberto no colo, mas as palavras não vinham. Minha cabeça girava em círculos. A presença de Marina durante o dia tinha sido inesperadamente leve, como uma pequena pausa no sufoco. Mas aquilo também me deixava confusa. Era mais fácil quando tudo doía, porque pelo menos eu sabia como reagir. Era mais fácil sentir raiva do que aceitar gentileza.

Fechei o caderno e levantei. Saí do quarto e andei descalça pelo corredor. A casa estava mergulhada numa penumbra quente, como se dormisse com um olho aberto. No andar de baixo, ouvi uma música distante — violão, suave, melódico.

Segui o som.

Me aproximei da porta do cômodo ao lado do escritório e, por um instante, hesitei. Mas a curiosidade venceu.

Empurrei a porta só o suficiente para espiar.

Era Lorenzo.

Sentado em um banco de madeira, de costas para mim, com um violão apoiado no colo. Tocava como se estivesse em outro lugar, o rosto levemente inclinado, os dedos deslizando pelas cordas com precisão. Não parecia alguém que eu conhecia. Não parecia o Lorenzo que me encarou na sala com dureza. Parecia outro. Mais humano. Quase... triste.

Fiquei ali, quieta, sem me anunciar. A música preenchia o ambiente com uma melancolia bonita. Quase chorei — e nem sabia bem por quê.

Quando ele terminou, ficou em silêncio por alguns segundos. Depois, sem se virar, disse:

— Vai ficar aí muito tempo?

Engoli seco.

— Desculpa. Eu... só ouvi a música.

Ele virou o rosto levemente. A luz da luminária desenhava sombras fortes no queixo e nas maçãs do rosto.

— É errado querer um pouco de paz nessa casa?

— Não. Só me surpreendeu. Você parece outro quando toca.

Ele riu. Um som curto e seco.

— Isso porque você não sabe nada sobre mim.

— E você sabe tudo sobre mim?

Ele virou-se por completo agora. O violão ainda nas mãos.

— Não preciso saber. Você entrou aqui como uma pedra jogada num lago. Mudou o ritmo de tudo. Do meu pai. Das minhas irmãs. De mim.

— Não foi escolha minha.

— Eu sei. E talvez por isso seja ainda mais difícil lidar com isso.

Fiquei em silêncio. Ele também.

— Por que vocês estavam brigando hoje? — arrisquei perguntar.

— Porque ele quer que eu assuma a empresa mais cedo. E eu… não quero.

— Mas você parece do tipo que assume tudo sem questionar.

— Pois é. E talvez esteja cansado de ser esse tipo.

A sinceridade na voz dele me desconcertou. Havia dor ali. E cansaço. Uma exaustão que eu reconhecia, porque era parecida com a minha.

— Sabe, Lorenzo… você não é tão bom em esconder as rachaduras quanto pensa.

Ele me olhou por um segundo, e algo no rosto dele mudou. Não era irritação. Nem defesa. Era aceitação.

— Você também não, Valentina.

Ficamos nos encarando por alguns instantes. Percebi agora que havia algo além de atrito entre nós. Um terreno neutro. Um fio tênue de compreensão.

— Boa noite, — disse ele, voltando a olhar para o violão.

— Boa noite.

Saí do cômodo sem dizer mais nada, mas levei comigo aquele som. Aquela confissão não dita. Aquele vislumbre de que Lorenzo Calderon não era feito só de concreto.

Talvez — assim como eu — ele também estivesse tentando encontrar onde, afinal, era o seu lugar.

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Isabel Esteves Lima

Isabel Esteves Lima

Ernesto conheceu a mãe dela, se casou e ela morreu, e ele ficou com a guarda é isso.

2025-09-08

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Capítulos
1 Prefácio — Entre Nós, os Calderon
2 Capítulo 1 — Uma Casa Que Não Era Minha
3 Capítulo 2 — Paredes que Escutam
4 Capítulo 3 — Por Trás das Cortinas
5 Capítulo 4 — Quando Ninguém Está Olhando
6 Capítulo 5 — Mesa para Sete
7 Capítulo 6 — O Lugar Onde Tudo Ecoa
8 Capítulo 7 — As Coisas que Não Dizemos
9 Capítulo 8 — Onde o Silêncio Quebra
10 Capítulo 9 — Tudo que Não Dizemos em Voz Alta
11 Capítulo 10 — Coisas que se Revelam no Silêncio
12 Capítulo 11 — Coisas que se Partem em Silêncio
13 Capítulo 12 — Coisas Que Doem em Voz Alta
14 Capítulo 13 — Depois do Aplauso
15 Capítulo 14 — Quando a Luz Incomoda
16 Capítulo 15 — O Dia em que a Cidade Escutou
17 Capítulo 16 — O Dia Antes
18 Capítulo 17 — Entre a Partida e o Sábado
19 Capítulo 18 — As Coisas que Voltam
20 Capítulo 19 — O Sábado que Chegou
21 Capítulo 20 — Quando as Rachaduras Se Mostram
22 Capítulo 21 — O Peso das Regras
23 Capítulo 22 — O Peso do Olhar
24 Capítulo 23 — O Quebra-Cabeça dos Irmãos
25 Capítulo 24 — A Casa em Estado de Sítio
26 Capítulo 25 — O Peso de Um Nome
27 Capítulo 26 — Quando As Paredes Escutam
28 Capítulo 27 — O Que Ele Nunca Disse
29 Capítulo 28 — O Peso do Que Não se Diz
30 Capítulo 29 — O Segredo que Queima
31 Capítulo 30 — Quando a Verdade Se Arrasta para a Luz
32 Capítulo 31 — Entre o Fogo e o Sangue
33 Capítulo 32 — Linhas que Não Podem Ser Cruzadas
34 Capítulo 33 — Trégua com Bordas (I)
35 Capítulo 33 — Trégua com Bordas (II)
36 Capítulo 34 — Vozes que Não se Apagam
37 Capítulo 35 — O Fantasma da Sala Fechada
38 Capítulo 36 — Vozes da Estrada
39 Capítulo 37 — O Peso das Verdades
40 Capítulo 38 — O Contra-ataque
41 Capítulo 39 — O Julgamento Dentro de Casa
42 Capítulo 40 — Quando o Silêncio Ecoa Para Fora
43 Capítulo 41 — Quando as Vozes se Tornam Grito
44 Epílogo — Entre Nós, os Calderon
Capítulos

Atualizado até capítulo 44

1
Prefácio — Entre Nós, os Calderon
2
Capítulo 1 — Uma Casa Que Não Era Minha
3
Capítulo 2 — Paredes que Escutam
4
Capítulo 3 — Por Trás das Cortinas
5
Capítulo 4 — Quando Ninguém Está Olhando
6
Capítulo 5 — Mesa para Sete
7
Capítulo 6 — O Lugar Onde Tudo Ecoa
8
Capítulo 7 — As Coisas que Não Dizemos
9
Capítulo 8 — Onde o Silêncio Quebra
10
Capítulo 9 — Tudo que Não Dizemos em Voz Alta
11
Capítulo 10 — Coisas que se Revelam no Silêncio
12
Capítulo 11 — Coisas que se Partem em Silêncio
13
Capítulo 12 — Coisas Que Doem em Voz Alta
14
Capítulo 13 — Depois do Aplauso
15
Capítulo 14 — Quando a Luz Incomoda
16
Capítulo 15 — O Dia em que a Cidade Escutou
17
Capítulo 16 — O Dia Antes
18
Capítulo 17 — Entre a Partida e o Sábado
19
Capítulo 18 — As Coisas que Voltam
20
Capítulo 19 — O Sábado que Chegou
21
Capítulo 20 — Quando as Rachaduras Se Mostram
22
Capítulo 21 — O Peso das Regras
23
Capítulo 22 — O Peso do Olhar
24
Capítulo 23 — O Quebra-Cabeça dos Irmãos
25
Capítulo 24 — A Casa em Estado de Sítio
26
Capítulo 25 — O Peso de Um Nome
27
Capítulo 26 — Quando As Paredes Escutam
28
Capítulo 27 — O Que Ele Nunca Disse
29
Capítulo 28 — O Peso do Que Não se Diz
30
Capítulo 29 — O Segredo que Queima
31
Capítulo 30 — Quando a Verdade Se Arrasta para a Luz
32
Capítulo 31 — Entre o Fogo e o Sangue
33
Capítulo 32 — Linhas que Não Podem Ser Cruzadas
34
Capítulo 33 — Trégua com Bordas (I)
35
Capítulo 33 — Trégua com Bordas (II)
36
Capítulo 34 — Vozes que Não se Apagam
37
Capítulo 35 — O Fantasma da Sala Fechada
38
Capítulo 36 — Vozes da Estrada
39
Capítulo 37 — O Peso das Verdades
40
Capítulo 38 — O Contra-ataque
41
Capítulo 39 — O Julgamento Dentro de Casa
42
Capítulo 40 — Quando o Silêncio Ecoa Para Fora
43
Capítulo 41 — Quando as Vozes se Tornam Grito
44
Epílogo — Entre Nós, os Calderon

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