A casa Calderon era mais barulhenta do que eu esperava. Mesmo nas horas em que tudo parecia silencioso, havia vozes abafadas, portas que fechavam com mais força do que deviam, passos apressados no corredor. Sons que só existem em casas onde há coisas demais sendo engolidas para dentro.
Depois de voltar da feira com Marina, subi direto para o quarto. Não tinha fome, e a discussão que ouvimos da varanda ainda ecoava na minha mente.
Ernesto e Lorenzo.
Duas vozes diferentes, dois pesos diferentes. O pai tentando manter o controle. O filho mais velho desafiando sem levantar a voz. Tudo soava milimetricamente contido, mas, mesmo assim, intenso demais.
Não desci para o jantar.
De novo.
Não que alguém tenha vindo perguntar por quê.
Fiquei na cama com o caderno aberto no colo, mas as palavras não vinham. Minha cabeça girava em círculos. A presença de Marina durante o dia tinha sido inesperadamente leve, como uma pequena pausa no sufoco. Mas aquilo também me deixava confusa. Era mais fácil quando tudo doía, porque pelo menos eu sabia como reagir. Era mais fácil sentir raiva do que aceitar gentileza.
Fechei o caderno e levantei. Saí do quarto e andei descalça pelo corredor. A casa estava mergulhada numa penumbra quente, como se dormisse com um olho aberto. No andar de baixo, ouvi uma música distante — violão, suave, melódico.
Segui o som.
Me aproximei da porta do cômodo ao lado do escritório e, por um instante, hesitei. Mas a curiosidade venceu.
Empurrei a porta só o suficiente para espiar.
Era Lorenzo.
Sentado em um banco de madeira, de costas para mim, com um violão apoiado no colo. Tocava como se estivesse em outro lugar, o rosto levemente inclinado, os dedos deslizando pelas cordas com precisão. Não parecia alguém que eu conhecia. Não parecia o Lorenzo que me encarou na sala com dureza. Parecia outro. Mais humano. Quase... triste.
Fiquei ali, quieta, sem me anunciar. A música preenchia o ambiente com uma melancolia bonita. Quase chorei — e nem sabia bem por quê.
Quando ele terminou, ficou em silêncio por alguns segundos. Depois, sem se virar, disse:
— Vai ficar aí muito tempo?
Engoli seco.
— Desculpa. Eu... só ouvi a música.
Ele virou o rosto levemente. A luz da luminária desenhava sombras fortes no queixo e nas maçãs do rosto.
— É errado querer um pouco de paz nessa casa?
— Não. Só me surpreendeu. Você parece outro quando toca.
Ele riu. Um som curto e seco.
— Isso porque você não sabe nada sobre mim.
— E você sabe tudo sobre mim?
Ele virou-se por completo agora. O violão ainda nas mãos.
— Não preciso saber. Você entrou aqui como uma pedra jogada num lago. Mudou o ritmo de tudo. Do meu pai. Das minhas irmãs. De mim.
— Não foi escolha minha.
— Eu sei. E talvez por isso seja ainda mais difícil lidar com isso.
Fiquei em silêncio. Ele também.
— Por que vocês estavam brigando hoje? — arrisquei perguntar.
— Porque ele quer que eu assuma a empresa mais cedo. E eu… não quero.
— Mas você parece do tipo que assume tudo sem questionar.
— Pois é. E talvez esteja cansado de ser esse tipo.
A sinceridade na voz dele me desconcertou. Havia dor ali. E cansaço. Uma exaustão que eu reconhecia, porque era parecida com a minha.
— Sabe, Lorenzo… você não é tão bom em esconder as rachaduras quanto pensa.
Ele me olhou por um segundo, e algo no rosto dele mudou. Não era irritação. Nem defesa. Era aceitação.
— Você também não, Valentina.
Ficamos nos encarando por alguns instantes. Percebi agora que havia algo além de atrito entre nós. Um terreno neutro. Um fio tênue de compreensão.
— Boa noite, — disse ele, voltando a olhar para o violão.
— Boa noite.
Saí do cômodo sem dizer mais nada, mas levei comigo aquele som. Aquela confissão não dita. Aquele vislumbre de que Lorenzo Calderon não era feito só de concreto.
Talvez — assim como eu — ele também estivesse tentando encontrar onde, afinal, era o seu lugar.
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Atualizado até capítulo 44
Comments
Isabel Esteves Lima
Ernesto conheceu a mãe dela, se casou e ela morreu, e ele ficou com a guarda é isso.
2025-09-08
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