Eu observei a janela do carro durante quase todo o caminho, como se aquele vidro embaçado pudesse me devolver algum sentido. Cada paisagem que passava se misturava às minhas lembranças, e em algum momento, tudo começou a parecer borrado — como as últimas semanas da minha vida. Tudo rápido demais, tudo fora do meu controle.
A estrada era longa e serpenteava entre colinas e campos verdes, como se zombasse do que eu sentia. Era bonita, admito. Mas a beleza não serve de consolo quando o peito está oco.
Minha mochila estava jogada ao meu lado, aberta. Metade das minhas coisas ainda estava dentro dela, a outra metade... eu nem sabia mais onde tinha ido parar. Depois que minha mãe se foi, ninguém me perguntou o que eu queria. Não houve escolha. Houve apenas decisões tomadas por advogados, um juiz, e um homem chamado Ernesto Calderon — que, até dois meses atrás, era apenas o novo marido da minha mãe, alguém com quem ela trocava e-mails e sorrisos discretos.
Ele não era meu pai.
Nem próximo disso.
Mas agora... era tudo o que eu tinha.
— Chegando, — disse ele, sem tirar os olhos da estrada.
Balancei a cabeça em silêncio, sem conseguir disfarçar a rigidez nos meus ombros. Ele tentou puxar conversa algumas vezes durante o trajeto, mas se cansou da minha indiferença. Eu não estava pronta para conversas. Talvez nunca estivesse.
Assim que viramos uma curva, avistei a casa. Era… enorme. Dois andares, janelas simétricas, uma varanda com vasos de plantas perfeitamente alinhados. Parecia saída de um catálogo imobiliário.
Nada nela parecia acolhedor.
Ernesto estacionou com cuidado e desligou o carro.
— Vai dar tudo certo, Valentina. Eu sei que isso é difícil.
— Não sabe, — rebati, finalmente. Minhas palavras saíram mais afiadas do que eu pretendia.
Ele suspirou, mas não respondeu.
A porta da frente se abriu antes que eu saísse do carro. Cinco rostos curiosos se empilharam no batente como se estivessem em fila para me analisar. Eu não sabia quem era quem, só sabia que todos eram filhos dele — meus “meio-irmãos”, segundo os papéis oficiais.
Meio-irmãos. Meio desconhecidos. Meio tudo.
Peguei minha mochila, respirei fundo e caminhei em direção à casa. Cada passo parecia mais pesado que o anterior. O ar ali tinha outro cheiro. Outro ritmo. Era como se eu tivesse atravessado para um universo paralelo.
A primeira a se aproximar foi uma menina ruiva, uns dois anos mais nova do que eu. Ela sorriu, hesitante, como se estivesse tentando ser gentil sem invadir meu espaço.
— Oi, eu sou a Bianca. Bem-vinda.
Não respondi de imediato. Só forcei um aceno com a cabeça e continuei andando. Os outros ficaram parados, observando. Um dos garotos, alto, de expressão fechada e braços cruzados, parecia particularmente irritado com a minha chegada. Ele não sorriu. Não se moveu. Só me encarou com olhos que diziam: “Você não pertence a isso aqui.”
Eu concordava com ele.
Ernesto me conduziu até o quarto que seria “meu”. Uma suíte no segundo andar, com cama arrumada, cortinas novas e uma escrivaninha com um caderno em cima, como se alguém estivesse tentando prever o que uma garota da minha idade gostaria.
— Compramos umas coisas novas pra você. Achamos que ia gostar.
— Não precisava, — murmurei, largando a mochila no chão.
— A porta fica trancada por dentro. Se quiser privacidade, fique à vontade. O jantar é às sete.
Ele hesitou antes de sair. Acho que queria dizer algo, mas desistiu.
Quando fiquei sozinha, sentei na beira da cama e fiquei ali. Olhando para o nada. O silêncio da casa era desconfortável. Não porque fosse quieta demais — havia sons vindos do andar de baixo, vozes, passos, uma risada distante —, mas porque era um silêncio que me excluía. Um silêncio que me dizia: "Você não faz parte disso."
Olhei para o caderno na escrivaninha. Abri a capa. Era novo, sem linhas, com folhas brancas e cheias de possibilidades que eu não queria explorar.
Peguei uma caneta da mochila e escrevi na primeira página:
“Essa não é minha casa.
Essa não é minha família.
Isso não é minha vida.
Ainda não.”
Depois fechei o caderno.
E chorei, pela primeira vez desde o enterro da minha mãe.
Não foi um choro barulhento ou dramático. Foi silencioso, cansado, e amargo. Um choro que só se permite quando você já não tem mais força para segurar nada.
A noite chegou devagar. Eu não desci para o jantar. Ninguém veio me chamar.
E, por algum motivo, isso doeu mais do que se tivessem batido na porta com um prato de comida.
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Atualizado até capítulo 44
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