Os dias no hospital passaram de forma lenta, quase arrastada, como se o tempo tivesse sido diluído em um mingau morno — o mesmo mingau que Samile se via obrigada a tomar todas as manhãs para fortalecer o estômago debilitado. As sopas vinham em tigelas fumegantes, sempre acompanhadas de um pão macio que ela nunca conseguia comer inteiro. O gosto era agradável, mas o fato de estar restrita a essa dieta lhe lembrava o quanto ainda era frágil, como se cada colherada fosse um lembrete de sua própria vulnerabilidade.
Ainda assim, pouco a pouco, sentia a vitalidade retornar ao corpo. Já conseguia caminhar curtas distâncias, e o médico havia permitido rápidos passeios pelos corredores do hospital, acompanhada pelo enfermeiro. Foram justamente esses passeios que começaram a plantar as sementes de desconfiança em sua mente.
No início, Samile achou que era coisa da imaginação: o silêncio, a ausência de passos, os corredores sempre limpos e iluminados demais. Mas depois notou que não era impressão. A ala inteira onde estava era… deserta. As portas alinhadas exibiam números, mas ao espiar discretamente, viu que todos os quartos estavam vazios. Não apenas desocupados, mas preparados, como se alguém tivesse arrumado os leitos à espera de pacientes que nunca chegavam.
— É só coincidência… — murmurava para si mesma, tentando afastar o desconforto.
Mas a cada dia a coincidência parecia menos plausível.
Do quarto onde estava internada, havia uma janela ampla. Nos primeiros dias, Samile não tinha forças para se aproximar, mas agora passava longos minutos deitada observando a paisagem urbana que se estendia diante de seus olhos. E foi ali que veio a segunda estranheza.
As construções eram diferentes. Não diferentes no sentido de antigas ou arruinadas, mas modernas demais. Torres de vidro com recortes geométricos ousados, pontes suspensas ligando edifícios, jardins suspensos em meio às fachadas. Era um tipo de arquitetura que ela jamais vira em sua cidade natal, Marituba, nem mesmo em Belém, nem em São Paulo — e Samile já havia pesquisado bastante sobre as capitais brasileiras.
— Onde é que eu estou? — perguntava em voz baixa, com um aperto no peito.
A dúvida era corrosiva. Se estava no Brasil, como explicar aqueles prédios que mais pareciam ter saído de uma ficção científica? Se estava em outro país, por que todos falavam português tão perfeitamente, sem sotaque, sem deslizes?
Com essas perguntas rodopiando em sua mente, o tempo arrastou-se até que o dia chegou. O dia em que poderia, finalmente, conversar com o psicólogo.
Foi conduzida por um enfermeiro até uma sala que parecia menos uma instalação hospitalar e mais um lounge cuidadosamente projetado. As paredes eram de vidro fosco, permitindo a entrada de luz difusa sem revelar o que havia do lado de fora. Plantas em vasos altos ocupavam os cantos, trazendo um toque de vida verde ao ambiente. Duas poltronas reclináveis estavam dispostas de frente uma para a outra, separadas por uma mesinha onde repousava uma jarra de água e dois copos.
Samile hesitou na porta, olhando em volta. O ambiente era acolhedor, aconchegante, quase convidativo. Mas em seu peito o coração batia acelerado, como se pressentisse que algo perturbador estava prestes a acontecer.
O psicólogo chegou alguns minutos depois. Um homem de meia-idade, cabelo escuro começando a encanecer nas laterais, expressão calma. Seus olhos tinham uma serenidade que, de imediato, contrastava com a agitação interior de Samile. Ele cumprimentou-a com um gesto cordial e convidou-a a se sentar.
— Samile, certo? — perguntou, confirmando o nome enquanto ajeitava uma prancheta sobre o colo.
Ela assentiu, nervosa.
— Antes de qualquer coisa — disse ele, — quero que saiba que não estamos aqui para forçar nada. Você pode falar livremente, ou pode só ouvir, se preferir. Mas acredito que você tem muitas dúvidas.
Samile deixou escapar uma risada curta, quase irônica.
— Dúvidas é pouco. Eu nem sei onde estou. Nem sei se estou sonhando, morta… ou sequestrada.
O psicólogo apoiou os cotovelos nos joelhos, inclinando-se levemente para a frente.
— Entendo. Mas antes de responder, gostaria de contar uma história. Uma história antiga, mas necessária para que tudo comece a fazer sentido.
Ela arqueou as sobrancelhas, surpresa.
— Uma… história?
— Sim. Ouça com calma.
E ele começou a narrar.
“Muitos anos atrás, nos primórdios da dinastia imperial — a segunda dinastia, chamada de dinastia Chocon —, houve uma fêmea mulher que governava. Seu reinado parecia comum, mas guardava um segredo enraizado em seu sangue.
Um de seus ancestrais havia se relacionado com uma fêmea mulher, e dessa união nasceram gêmeos. Um deles era uma fêmea, a outra uma fêmea mulher. Ainda crianças, as duas foram separadas: o mais velho, raptado; a mais nova, herdeira do trono.
A fêmea mulher cresceu cercada de mimos e privilégios. Foi adorada por cortesãos, mas não pelo povo. Tornou-se vaidosa, superficial, amarga. Enquanto isso, o irmão perdido foi reencontrado. Ele cresceu humilde, longe da corte, e mesmo sem ambicionar o trono, conquistava o afeto popular.
Esse contraste alimentou a inveja da soberana. Seu coração se escureceu, até que, num confronto direto, ela esfaqueou o irmão no coração. Mas, surpreendentemente, ele sobreviveu. Mesmo ferido, conseguiu aprisioná-la em outra dimensão, selando seu destino para sempre.
Com a queda da soberana, todos os ligados a ela foram rebaixados da realeza à condição de plebeus. Assim se ergueu a família Aslan, enquanto a dinastia Chocon desaparecia.
O tempo passou. Outras dinastias surgiram. Agora estamos sob a dinastia Urgarus, herdeira indireta de tudo o que foi perdido.”
O silêncio que se seguiu foi pesado. Samile piscou várias vezes, tentando processar a fábula que acabara de ouvir.
— E o que eu… — sua voz falhou, e ela recomeçou. — O que eu tenho a ver com essa historinha?
O psicólogo não desviou o olhar.
— Tudo. Porque essa história é real. E porque você, Samile, não está mais no seu planeta de origem. Você está em um planeta chamado Homens-Fera. Aqui, a sua espécie é chamada de fêmea-mulher.
O coração dela disparou. Por alguns segundos, acreditou que tinha ouvido errado.
— Outro… planeta? — repetiu, incrédula. — Está dizendo que… existe vida em outros mundos?
— Não apenas vida. — Ele se recostou na poltrona, cruzando as pernas. — Existe civilização, dinastias, reinos. E você agora faz parte disso.
Samile levou as mãos à boca, balançando a cabeça.
— Isso é impossível. Como… como pode provar uma coisa dessas?
O psicólogo não respondeu com palavras. Endireitou-se, respirou fundo e, diante dos olhos atônitos dela, começou a mudar. Seus traços se distorceram, músculos se expandiram, ossos pareceram se mover sob a pele. Em segundos, onde antes estava um homem comum, agora erguia-se uma criatura animalesca, imponente, com garras e olhos luminosos.
Samile recuou instintivamente na poltrona, ofegante, o coração martelando no peito.
A criatura a fitou por alguns instantes, então voltou a assumir a forma humana, com a mesma serenidade de antes.
— Essa é a prova. Eu sou um homem-fera. E você está no planeta deles.
Samile permaneceu muda. Não havia palavras para traduzir a confusão em sua mente. Pessoas que se transformavam em animais? Outro planeta? Isso não podia ser real. Mas… ela tinha visto com os próprios olhos.
Ainda catatônica, conseguiu sussurrar:
— Continue.
O psicólogo inclinou a cabeça, compreensivo.
— Neste mundo, existem três espécies principais: os homens-fera, capazes de assumir formas animais; os fêmeas, que não se transformam, mas possuem um corpo que produz uma toxina essencial para nós; e agora… as fêmeas-mulher, como você.
Ele fez uma pausa antes de prosseguir.
— Os homens-fera precisam do cheiro e do contato dos fêmeas para manter o controle sobre seus instintos. Sem isso, perdem a capacidade de retornar à forma humana. Tornam-se bestas selvagens e são exilados em outro planeta. É por isso que a espécie das fêmeas é tão vital. Elas sustentam nossa sanidade.
Samile apertou os dedos contra os braços da poltrona.
— E eu? — perguntou em voz baixa.
— Você é ainda mais rara. Uma fêmea-mulher. Suas toxinas são mais potentes do que as das fêmeas comuns. É por isso que sequestradores mantêm sua espécie cativa quando encontram uma. E foi por isso que você foi aprisionada.
Ele se aproximou um pouco mais, a voz baixa, mas firme.
— Por sorte, o imperador ordenou uma busca sobre essa situação que vem se seguindo a alguns meses. E você foi encontrada a tempo.
As palavras ficaram suspensas no ar. Samile não soube o que responder. Tudo nela gritava que aquilo era loucura — outro planeta, homens que viravam animais, toxinas vitais… Mas ao mesmo tempo, nada mais explicava os prédios estranhos, o hospital vazio, o modo como todos pareciam tratá-la como alguém especial.
Ela levou as mãos ao rosto e respirou fundo.
— Eu não sei o que pensar… — murmurou. — Não sei se acredito ou se corro gritando que enlouqueci.
O psicólogo apenas aguardou, em silêncio.
E Samile, pela primeira vez desde que acordara naquele lugar, sentiu que sua vida havia mudado de uma forma que jamais poderia ser desfeita.
Procurando um último fio de esperança, Samile perguntou com a voz fraca, quase implorando:
— Então… eu posso voltar para o meu planeta? Se eu fui trazida de lá, também posso ser levada de volta… não posso?
O psicólogo, com a serenidade treinada de quem já ouvira aquela pergunta muitas vezes, abaixou levemente os olhos antes de responder:
— Eu não tenho essa informação. O planeta de onde você veio ainda não foi identificado. O que sabemos é que as fêmeas-mulher simplesmente… aparecem aqui. Em algumas capitais, do nada, como se fossem lançadas através de um portal invisível. Não existe forma de rastrear.
Samile repetiu, sem se dar conta do quanto sua voz soava lamentável e impotente:
— Então… eu não posso voltar pra casa?
— Não. — respondeu ele com suavidade, mas firme. — Mas você pode se adaptar. Esse lugar pode lhe oferecer segurança, oportunidades… e por ser rara, você terá acesso ao melhor tratamento, recursos e cuidado.
Mas Samile não conseguiu ouvir mais nada depois daquela palavra: não.
Sentiu o mundo girar e caiu para trás na poltrona, como se seu corpo estivesse esvaziado de alma.
A mente entrou em colapso.
"Isso não está acontecendo de verdade. É só um pesadelo. Eu vou acordar logo… eu vou acordar logo…", repetia mentalmente.
O psicólogo se inclinou, a voz baixa como quem fala com uma criança ferida:
— Você perdeu sua Terra, Samile. É natural não conseguir processar ainda.
(…) O que você mais sente falta neste momento?
(…) O que ainda parece real para você?
Os olhos dela marejaram.
— Da minha amiga… a Lari. — sussurrou, quase sem ar. — Ela… ela está aqui também? Ou…
Não teve coragem de completar a frase. A possibilidade de que Lari tivesse morrido na queda do avião, ou sido morta pelos traficantes, era insuportável.
— Se eu sou uma fêmea-mulher… então ela também é.
O psicólogo deslizou o dedo sobre o relógio de pulso e um holograma azul cintilante se ergueu diante deles.
— A tecnologia daqui é mais avançada. Não se assuste. — explicou. — Eu vou verificar.
Samile, mesmo atônita, achou curioso o dispositivo, como se parte dela fosse obrigada a se distrair com aquilo.
Após alguns segundos, ele sorriu de leve.
— Encontrei. A paciente Lari foi registrada. Ela está bem. Saudável. E… casada com o segundo marido.
Samile arregalou os olhos.
— Perdão?! Casada?
Por um instante, a perplexidade a fez esquecer sua dor. Conhecia bem a amiga — com relação a homens, Lari nunca perdia tempo. Mas já estar casada num mundo completamente novo… isso, sim, era uma surpresa até para alguém tão desmedida.
— Eu posso vê-la? — pediu ansiosa.
— É possível. Mas pode demorar. Ela vive longe da capital, em um lugar de pouco sinal. Até que a mensagem chegue e ela faça a viagem, podem passar alguns meses.
Samile suspirou, mista de desânimo e alívio. Pelo menos, Lari estava viva. Feliz. Segura.
Mas logo a maré mudou dentro dela.
Uma raiva crescente queimava seu peito — raiva dos sequestradores, raiva do destino, raiva de si mesma por ter perdido tudo. Chorou de raiva, não de dor, soluçando como se cuspisse fogo e cinzas.
O psicólogo a deixou extravasar. Entregou-lhe lenços, esperou pacientemente e, aos poucos, foi guiando suas palavras até encontrar a raiz: sua carreira.
— Você não perdeu apenas sua Terra… perdeu seu caminho. Sua chance ao estrelato. É isso?
Ela assentiu com um soluço.
— Sim! Eu tinha tudo planejado… e agora… agora acabou!
Ele olhou nos olhos dela, sério:
— Não acabou. Você pode recomeçar aqui. O que você chama de “criadora de conteúdo”… não existe neste planeta. Você seria a primeira. A pioneira. Isso a tornaria não apenas relevante… mas memorável.
Samile o encarou em silêncio. Parte dela queria rejeitar, outra parte se acendeu com a possibilidade.
— A raiva é natural, Samile. É uma resposta humana à perda extrema. Mas ela também pode ser combustível para um novo começo.
Ela respirou fundo, tremendo, segurando o lenço com força.
— Então… eu posso… construir uma vida nova aqui?
— Sim. — afirmou o psicólogo, firme. — E eu estarei com você em cada passo. Comunicação, aprendizado, moradia… nós vamos trabalhar juntos até que esse lugar seja seu lar.
Samile baixou o olhar, ainda em pedaços, mas com uma centelha acesa em meio às ruínas.
Talvez… só talvez… ainda houvesse vida possível além da Terra.
...***...
Se está gostando não deixe de curtir pra mim saber e me segue no coraçãozinho, bjs.
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Atualizado até capítulo 49
Comments
Jessica Carmo
gostei do capítulo.
2025-09-03
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