Capítulo 2 — A Viagem

O portão de embarque foi aberto, e uma corrente de pessoas começou a se levantar, arrastando malas, mochilas, sonhos e cansaços madrugada adentro. Lari segurou minha mão com força e me puxou para frente, o rosto dela iluminado como se fosse criança prestes a entrar em um parque de diversões.

— Bora, ruiva, é agora! — ela exclamou, e quando passamos pela porta que levava ao corredor metálico até o avião, ergueu a mão para o alto.

Eu não resisti; ergui a minha também, e nossas palmas se encontraram no ar, com um estalo que ecoou como um pacto. Rimos alto, sem vergonha, ignorando os olhares discretos de quem nos achava entusiasmadas demais. Mas aquele momento era só nosso: o início de uma aventura.

O cheiro metálico do corredor, misturado ao de combustível e limpeza, grudava na garganta, e cada passo nos aproximava da promessa de céu aberto. Ou quase aberto, já que a manhã cinzenta pesava sobre tudo, como um cobertor de chumbo. Ainda assim, meu coração batia forte, e a vibração do avião à nossa frente era como o prenúncio de algo maior.

Entramos, acomodando-nos em nossas poltronas lado a lado. O estofado azul-escuro tinha um cheiro de tecido gasto, misturado ao ar-condicionado gelado que batia diretamente no rosto. Lari jogou a bolsa no colo e já começou a mexer no celular, rindo sozinha de alguma notificação.

— Tá feliz, né? — perguntei, ajeitando o cinto de segurança e passando a mão pelos meus cabelos ruivos, que insistiam em cair sobre o rosto.

Ela virou-se para mim, os olhos brilhando de malícia.

— Feliz é pouco. Eu tô é excitada! — disse sem pudor. — Sam, você tem noção que eu vou turistar, mas não é em pontos turísticos… é nos homens desses pontos. É como eu sempre digo: a melhor paisagem é a de um cara bonito sem camisa.

Rolei os olhos, mas sorri.

— Você é impossível, Lari.

Ela ignorou minha censura com um gesto de mão, continuando sua linha de raciocínio.

— E pensa bem… a gente ainda tá no mesmo país, mas olha a viagem: sair do Pará pra São Paulo, de avião… já é outra capital, outro sotaque, outro estilo. É tipo namorar um estrangeiro sem nem precisar de passaporte.

Abri a boca para responder, mas fechei de novo. Não havia argumento que alcançasse a lógica torta de Lari. Dei uma risada baixa e apenas balancei a cabeça, deixando-a saborear a própria ideia absurda.

— Sem palavras — murmurei, rindo comigo mesma.

Ela se inclinou para o lado, encostando o ombro no meu, como quem queria arrancar ainda mais confissões de mim.

— Mas e você, hein? Tá com a cabeça só no prêmio ou sonhou alguma coisa quente ontem?

Mordi o lábio, sentindo as lembranças da noite anterior atravessarem minha pele como uma corrente elétrica. Eu não poderia contar sobre minha forma íntima de me acalmar antes de dormir. Mas havia algo que não me saía da cabeça.

— Sonhei, sim… — admiti, a voz mais baixa. — Mas não foi nada… quente. Foi diferente.

Ela arqueou a sobrancelha, curiosa.

— Diferente como?

Suspirei, deixando o olhar escapar pela janelinha do avião ainda coberta de névoa.

— Sonhei que estava casada. E tinha filhos. Muitos filhos. Era uma casa cheia, sabe? Com risadas, barulho, correria… — minha voz embargou um pouco, e percebi que falava mais para mim do que para ela. — Acho que no fundo é o que eu quero. Construir uma família grande. Eu sempre quis… já que nunca tive uma de verdade.

Lari ficou em silêncio por alguns segundos, observando-me com uma expressão menos zombeteira do que o normal. Mas não demorou muito para soltar sua gargalhada escandalosa.

— Até nos sonhos o teu subconsciente tá gritando: “Samile, arruma logo um macho, senão você vai acabar virando uma velha de 60 anos solteirona que ninguém mais quer”! — ela falou entre risos, batendo a mão na minha coxa.

Ri junto, embora uma pontada estranha tenha cutucado meu peito. Talvez houvesse verdade no exagero dela.

O avião começou a se mover pela pista, e a voz do comandante ecoou pelo sistema de som, dando as boas-vindas e informando a duração do voo. Lari já cochichava sobre os comissários de bordo, apontando com o queixo para um deles, jovem, de cabelos escuros e sorriso discreto.

— Olha aquele ali… se ele me chamar de “senhora” eu respondo “me chama de sua e já era”.

Eu quase engasguei com a água que bebia, rindo e tentando não atrair atenção dos passageiros ao redor.

As turbinas rugiram, o corpo inteiro pressionado contra a poltrona no momento da decolagem. Senti o estômago revirar com a subida, as orelhas estalando, o mundo lá fora ficando cada vez menor, as casas encolhendo até se tornarem manchas invisíveis.

Encostei a cabeça no assento, deixando o coração acompanhar o ritmo da altitude. O céu pela janela, no entanto, não trazia o azul cristalino que eu esperava. Cinzento, pesado, agora mais próximo, como se as nuvens quisessem engolir o avião.

Gotas de chuva começaram a riscar a janelinha, deslizando rápidas, como lágrimas apressadas.

Engoli em seco.

— Será que é seguro voar com chuva? — murmurei, mais para mim do que para Lari.

Ela deu de ombros, distraída demais tentando flertar com o comissário que passava.

Fiquei em silêncio, tentando racionalizar. O piloto sabia o que estava fazendo. Eles tinham experiência, treinamento, protocolos. Claro que sabiam. Respirei fundo, apoiando a mão na almofada de pescoço.

Mas, ainda assim, um arrepio desceu pela minha espinha. O mesmo que eu havia sentido no aeroporto, sob o olhar do mendigo e sua placa estranha.

Fechei os olhos, tentando afastar a lembrança. Concentrei-me nos sons do avião, no leve roçar do tecido contra minha pele, no batom que ainda grudava doce nos meus lábios. O frio do ar-condicionado fazia meus seios intumescidos se roçarem contra o top sob a blusa, e a sensação, quase imperceptível, trouxe-me de volta ao corpo.

Respirei fundo mais uma vez, permitindo-me relaxar. Era apenas o início. Uma viagem. Um voo como qualquer outro.

Ou pelo menos… eu queria acreditar nisso.

Tudo começou quando a conversa com Lari, a qual ela estava a todo momento puxando conversa, já tinha se transformado em gargalhadas abafadas quando o primeiro solavanco veio. Pequeno, quase imperceptível. Como se o avião tivesse tropeçado no ar.

Olhei pela janela. As nuvens eram densas, cinzentas, algumas mais escuras, quase negras. Antes que pudesse racionalizar, outro impacto, mais forte, fez meu corpo saltar alguns centímetros da poltrona. O cinto me puxou de volta com força, pressionando meu peito.

— Que porra é essa? — ouvi Lari resmungar, ajeitando-se na cadeira.

Um novo tranco. O avião balançou de um lado para o outro como um brinquedo desajeitado. Malas começaram a tremer nos compartimentos de bagagem, as portas superiores rangendo. O ar-condicionado soprava mais gelado, e meu estômago girava como se eu estivesse em uma montanha-russa prestes a despencar.

— O que está acontecendo? — perguntei em voz baixa, mas o som morreu na garganta quando um barulho metálico ecoou.

As portas dos compartimentos se abriram. Malas pesadas despencaram, caindo sobre os passageiros. Gritos explodiram ao meu redor. A sensação de peso nos puxava para baixo. A cada segundo, parecia que o avião perdia altitude.

E então, máscaras de oxigênio caíram das cabines, balançando diante de nós como cordões pendurados do destino.

Meu coração disparou. A respiração ficou curta, apressada. Pressionei a máscara contra meu rosto, mas minhas mãos tremiam tanto que quase não consegui prender o elástico atrás da cabeça.

Ao meu lado, Lari xingava alto, os olhos arregalados.

— Ei! — ela gritou para um comissário de bordo que tentava acalmar os passageiros alguns bancos à frente. — O que tá acontecendo?

Ele não respondeu. Não podia. O sorriso treinado tinha desaparecido, e a seriedade em seu rosto me dizia mais do que qualquer palavra. Ele também estava com medo.

As luzes do avião piscavam. O chão tremia. Uma mulher à frente chorava alto, repetindo uma oração entre soluços. Uma criança gritava pelo pai. O som coletivo era ensurdecedor.

Meu peito subia e descia rápido, e percebi que estava gritando também, mas não conseguia ouvir minha própria voz. O barulho era tanto — choros, súplicas, o motor rugindo, o ar atravessando o metal do avião — que meu grito era apenas mais um na massa desesperada.

Segurei a mão de Lari com força. Ela apertou de volta, nossos dedos entrelaçados num laço desesperado. Senti o calor da pele dela contra a minha, a única âncora em meio ao caos.

Meus pensamentos disparavam em todas as direções. Minha carreira, meu sonho de filhos, a infância sem pais, a solidão que nunca admiti em voz alta. O medo de nunca ter tido tempo. Medo de nunca ter vivido o suficiente.

— Eu não quero morrer! — Lari gritou, e pude ver o desespero cru nos olhos dela, tão diferentes da mulher ousada e vulgar que sempre se jogava na vida sem medo.

Eu queria responder, dizer algo, mas as palavras se dissolveram em lágrimas. Meu corpo inteiro vibrava com a queda. Era como se estivéssemos despencando por um abismo invisível.

O avião inclinou-se bruscamente para baixo. A gravidade me empurrou contra o assento, um peso esmagador no peito. Minhas mãos tremiam, meus seios comprimidos pelo cinto pareciam arder sob a pressão, e meu corpo, tão sensível e quente horas antes, agora era apenas medo, suor e tremor.

Tentei respirar, mas o ar parecia escapar. O cheiro do pânico — suor, lágrimas, o odor metálico do avião — invadiu minhas narinas.

Minha mente gritava: não pode acabar assim, não agora, não desse jeito.

Mais um impacto. Tudo tremeu. A escuridão da janela parecia engolir o avião.

A última coisa que senti foi a mão de Lari apertando a minha, nossos dedos unidos com força bruta, como se pudéssemos nos segurar uma à outra contra a própria morte.

E então, silêncio.

O som desapareceu como se alguém tivesse desligado o mundo.

Tudo ficou negro.

...***...

Se está gostando não deixe de curtir pra mim saber e me segue no coraçãozinho, bjs.

❤⃛ヾ(๑❛ ▿ ◠๑ )

Capítulos
1 Capítulo 1 - A Véspera
2 Capítulo 2 — A Viagem
3 Capítulo 3 — Entre Grades e Sombras
4 Capítulo 4 – O Resgate
5 Capítulo 5 – A Sessão
6 Capítulo 6 – Adaptação forçada
7 Capítulo 7 – Novo Começo, Novas Feridas
8 Capítulo 8 – A Festa Surpresa
9 Capítulo 9 - A Última Tentativa
10 Capítulo 10 - Pés Descalços, Alma Livre
11 Capítulo 11 - Gylan Meos
12 Capítulo 12 - Leandro Sol
13 Capítulo 13 - O Sabor da Independência
14 Capítulo 14 - Um Novo Cardápio para a Vida
15 Capítulo 15 - A Câmera, o Chef e um Toque de Farinha
16 Capítulo 16 - Entre o Desejo e o Dever
17 Capítulo 17 - Propostas e Rejeições
18 Capítulo 18 - Chuva, Impulso e um Desconhecido
19 Capítulo 19 - Uma Nova Lei, Um Novo Laço
20 Capítulo 20 - Confissões e Chamas
21 Capítulo 21 - Calor, Frio e uma Segunda Chance
22 Capítulo 22 - O Inverno Chega para Morar
23 Capítulo 23 - O Estilista
24 Capítulo 24 - Um Beijo Inesperado
25 Capítulo 25 - O Diagnóstico Inesperado
26 Capítulo 26 - O Gosto Doce e Amargo do "Sim"
27 Capítulo 27 - Cerco
28 Capítulo 28 - Uma Brisa Suave no Meio da Tempestade
29 Capítulo 29 - Leandro Sol
30 Capítulo 30 - O Oásis Secreto
31 Capítulo 31 - A Declaração e o Reencontro
32 Capítulo 32 - Confidências entre Mundos
33 Capítulo 33 - Dariel Seira
34 Capítulo 34 - Vigília e Acusações
35 Capítulo 35 - A Chegada dos Ovos
36 Capítulo 36 - Vigília, Rivalidades e um Convite ao Paraíso
37 Capítulo 37 - O Despertar e o Voo
38 Capítulo 38 - As Runas do Planeta Hostil
39 Capítulo 39 - O Lobo, o Sábio e a Salvação
40 Capítulo 40 - Campo de Batalha Íntimo
41 Capítulo 41 - Fios de Pena, Fios de Seda
42 Capítulo 42 - O Toque do Urso
43 Capítulo 43 - Bernardo Arktos
44 Capítulo 44 - Totalmente Sua
45 Capítulo 45 - Doce Despertar, Fria Realidade
46 Capítulo 46 - Gylan Meos
47 Capítulo 47 - Dariel Seira
48 Capítulo 48 - O Altar dos Cinco Corações
49 Epílogo
Capítulos

Atualizado até capítulo 49

1
Capítulo 1 - A Véspera
2
Capítulo 2 — A Viagem
3
Capítulo 3 — Entre Grades e Sombras
4
Capítulo 4 – O Resgate
5
Capítulo 5 – A Sessão
6
Capítulo 6 – Adaptação forçada
7
Capítulo 7 – Novo Começo, Novas Feridas
8
Capítulo 8 – A Festa Surpresa
9
Capítulo 9 - A Última Tentativa
10
Capítulo 10 - Pés Descalços, Alma Livre
11
Capítulo 11 - Gylan Meos
12
Capítulo 12 - Leandro Sol
13
Capítulo 13 - O Sabor da Independência
14
Capítulo 14 - Um Novo Cardápio para a Vida
15
Capítulo 15 - A Câmera, o Chef e um Toque de Farinha
16
Capítulo 16 - Entre o Desejo e o Dever
17
Capítulo 17 - Propostas e Rejeições
18
Capítulo 18 - Chuva, Impulso e um Desconhecido
19
Capítulo 19 - Uma Nova Lei, Um Novo Laço
20
Capítulo 20 - Confissões e Chamas
21
Capítulo 21 - Calor, Frio e uma Segunda Chance
22
Capítulo 22 - O Inverno Chega para Morar
23
Capítulo 23 - O Estilista
24
Capítulo 24 - Um Beijo Inesperado
25
Capítulo 25 - O Diagnóstico Inesperado
26
Capítulo 26 - O Gosto Doce e Amargo do "Sim"
27
Capítulo 27 - Cerco
28
Capítulo 28 - Uma Brisa Suave no Meio da Tempestade
29
Capítulo 29 - Leandro Sol
30
Capítulo 30 - O Oásis Secreto
31
Capítulo 31 - A Declaração e o Reencontro
32
Capítulo 32 - Confidências entre Mundos
33
Capítulo 33 - Dariel Seira
34
Capítulo 34 - Vigília e Acusações
35
Capítulo 35 - A Chegada dos Ovos
36
Capítulo 36 - Vigília, Rivalidades e um Convite ao Paraíso
37
Capítulo 37 - O Despertar e o Voo
38
Capítulo 38 - As Runas do Planeta Hostil
39
Capítulo 39 - O Lobo, o Sábio e a Salvação
40
Capítulo 40 - Campo de Batalha Íntimo
41
Capítulo 41 - Fios de Pena, Fios de Seda
42
Capítulo 42 - O Toque do Urso
43
Capítulo 43 - Bernardo Arktos
44
Capítulo 44 - Totalmente Sua
45
Capítulo 45 - Doce Despertar, Fria Realidade
46
Capítulo 46 - Gylan Meos
47
Capítulo 47 - Dariel Seira
48
Capítulo 48 - O Altar dos Cinco Corações
49
Epílogo

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