A cidade de San Fiore sempre pareceu viver em dois mundos. À luz do dia, era bela, quase tranquila: praças arborizadas, ruas de paralelepípedos, cafés sempre cheios, gente cumprimentando vizinhos como se todos se conhecessem. Mas, quando a noite descia, a atmosfera mudava. Os bares enchiam-se de figuras estranhas, as vielas ganhavam sombras perigosas, e os segredos da máfia caminhavam lado a lado com os cidadãos.
Era nesse cenário que Helena Vasques havia escolhido permanecer. Ela conhecia cada rua, cada canto escondido da cidade. San Fiore era ao mesmo tempo lar e campo de batalha.
Sua rotina começava cedo, antes do nascer do sol. O relógio mal batia cinco horas quando ela já estava em pé, cabelos presos em um coque apressado, um café preto entre as mãos. No andar de cima, a respiração leve da filha lembrava-lhe do motivo pelo qual não podia ceder ao medo.
A pequena Rafaela, de apenas quatro anos, era sua fraqueza e sua força. Os olhos azuis dela— tão diferentes dos dela — sempre a faziam lembrar que havia pureza em um mundo corrompido.
— Mamãe, você vai sair de novo? — perguntava ela, todas as manhãs, com a inocência que partia o coração.
— Vou, meu amor. Mas volto para te contar uma história antes de dormir — respondia, beijando-lhe a testa.
Ela nunca reclamava, nunca chorava alto. Talvez porque, desde cedo, já tivesse aprendido a lidar com ausências. Mas, no fundo, Helena sabia que sua escolha de ser juíza cobrava um preço alto também da criança.
A rotina dela era uma dança entre responsabilidades e riscos. Entre o café da manhã apressado com Rafaela e a corrida até o tribunal, cada movimento era calculado. Dois policiais à paisana a acompanhavam discretamente — proteção que ela fingia ignorar para não assustar a filha, mas que sabia ser necessária.
No tribunal, a toga pesava mais a cada dia. Processos se acumulavam, testemunhas recuavam, e o nome de Mancini surgia como um fantasma em cada folha de papel. Nos corredores, sussurros a seguiam. Alguns a admiravam por sua coragem, outros a condenavam em silêncio, chamando-a de insensata.
Mas era em casa que Helena deixava cair a máscara. Quando a noite chegava e ela voltava, cansada, para a sala iluminada apenas pelo abajur infantil, a juíza se transformava em mãe.
Sentava-se na cama de Rafaela, ajeitava-lhe o cobertor e inventava histórias. Não histórias de príncipes ou castelos, mas contos de coragem e esperança.
— Mamãe, e se os monstros existirem mesmo? — perguntou ela, certa noite, olhos arregalados.
Helena ficou em silêncio por um instante. O coração apertou, porque sabia que os monstros não viviam embaixo da cama — estavam nas ruas, vestiam terno e carregavam armas. Mas, com um sorriso suave, respondeu:
— Se existirem, nós vamos enfrentá-los juntos.
A menina sorriu, confiante, e adormeceu. Mas Helena ficou acordada, olhando-a dormir, como quem vigia o tesouro mais precioso do mundo.
E, no fundo, sabia: cada decisão tomada no tribunal era também uma tentativa desesperada de proteger aquele par de olhos azuis.
Naquela noite, a casa estava mergulhada em silêncio.
Helena acabara de colocar Rafaela na cama, depois de mais uma história improvisada sobre um cavaleiro que vencia monstros. A menina dormia tranquila, os cílios longos pousados sobre as maçãs rosadas do rosto.
No andar de baixo, Dona Lourdes, mãe de Helena, organizava a cozinha como fazia todas as noites. Tinha o hábito de deixar a chaleira cheia de água para o café da manhã, uma mania antiga que a filha achava curiosa.
— Mãe, deixa isso para amanhã. A senhora já fez muito hoje — disse Helena, da escada.
— Eu não consigo dormir sabendo que a casa está desarrumada. Amanhã vai ser um dia difícil, eu sei… — respondeu Lourdes, com olhar grave. — Só quero facilitar sua manhã.
Helena desceu, abraçando-a por trás. O cheiro de sabonete simples misturado ao de café fresco sempre a acalmava. Lourdes não era apenas mãe; era a fortaleza silenciosa que a sustentava.
— Obrigada por ficar com a Rafaela amanhã cedo — murmurou.
A mãe acariciou sua mão.
— Lembre-se, minha filha: coragem não é não ter medo. Coragem é seguir em frente apesar dele.
Essas foram as últimas palavras que Helena ouviria da mãe.
Pouco depois da meia-noite, o som seco de vidro quebrado cortou a madrugada. Helena acordou com o coração disparado. Desceu as escadas correndo e ouviu a voz da mãe na cozinha:
— Quem está aí?
Foram os segundos mais longos da sua vida.
Um estampido ecoou. O cheiro metálico da pólvora invadiu o ar. O corpo de Dona Lourdes tombou sobre o piso frio, os olhos ainda abertos em choque.
Helena correu até ela, ajoelhando-se no sangue que se espalhava pelo chão. A sombra de um homem escapava pela porta dos fundos. Rápido. Profissional. Um recado.
— Mamãe? — a vozinha sonolenta de Rafaela veio do alto da escada.
Helena correu, pegou a filha no colo e a apertou contra o peito, afastando-a da cena.
— Está tudo bem, meu amor… eu estou aqui.
Mas não estava. Nada estava.
Ela sabia: não era um assalto, era uma mensagem. “Se ousar condenar Mancini, perderá tudo o que ama.”
Até às próximas linhas.
G.sandles
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Atualizado até capítulo 31
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