Ela sentia cheiro de álcool e desespero.
As paredes do quarto eram acolchoadas, mas nada ali era macio. O colchão fino onde dormia há quase dois anos guardava marcas de urina, sangue e lágrimas — não apenas dela, mas de outras vozes que já tinham habitado aquele lugar antes de enlouquecerem de verdade.
Mas ela não estava louca.
Foi traída, dopada e levada ao limite.
— Sentiu saudades querida? — a voz da prima cortou o silêncio com a suavidade de uma faca entrando na carne. Ela usava perfume caro, salto alto e um sorriso de satisfação no rosto.
Elisa fechou os olhos. Não queria responder. Não queria dar a ela o prazer da reação.
Mas era difícil. Era difícil fingir que não sentia o coração sangrar de novo.
— Como sempre, vim te atualizar sobre as novidades e te trazer uma lembrancinha.— disse a prima, com um sorriso falso, balançando um envelope branco e luxuoso entre os dedos. — Espero que esteja tendo um bom dia... ou pelo menos o melhor que se pode ter num lugar como esse.
Elisa não respondeu. Apenas observou, em silêncio, enquanto a prima se aproximava com passos lentos, quase teatrais.
— Ela estendeu o envelope e o balançou levemente. — Um convite muito especial... para o meu casamento.
Elisa continuou em silêncio, os olhos fixos no envelope.
— Ah, não faça essa cara — disse a prima, sentando-se na beirada da cama com cara de nojo. — Você se lembra do Eduardo, não é? Claro que lembra. Como esquecer o grande amor da sua vida?
Elisa sentiu um aperto no peito, mas não reagiu.
— Pois é. Nós vamos nos casar no próximo mês. Ele está tão feliz... disse que nunca se sentiu tão seguro com alguém. — Ela riu com crueldade. — Acho que deve ser porque agora ele não precisa mais fingir que gosta de você.
Ela colocou o convite sobre o colo de Elisa e se levantou.
— Ah, e não se preocupe em comparecer. Sabemos que você tem... compromissos por aqui. Mas achei que seria uma delicadeza te manter informada.
Diante da falta de reação de Elisa Marcela continuou a provocá-la:
— Ele dizia que te amava tanto... — continuou a prima, aproximando-se da cama com um sorriso cínico. — Mas foi ele mesmo quem te ajudou a descer ladeira abaixo. A cada comprimido que ele colocava na sua bebida, a cada remédio que dizia ser "para o seu bem", você ia perdendo o controle... E nem desconfiava, não é?
Elisa permaneceu em silêncio, o olhar perdido em algum ponto do teto. A voz da prima parecia distante, como um eco cruel vindo de um lugar que ela já não queria mais visitar.
— No começo, ele hesitou, claro... disse que era perigoso, que aquilo era errado. Mas bastou um empurrãozinho. No fundo, acho que ele só precisava de uma desculpa pra se livrar de você.
Elisa fechou os olhos. Duas lágrimas escorreram lentamente por seu rosto pálido.
— Eu fui tão burra... — sussurrou com amargura. — Confiava nele mais do que em mim mesma. E ele... era só mais um canalha.
A prima sorriu, satisfeita com a quebra.
— Que pena... pensei que você reagiria. Gritaria, se revoltaria... mas está aí, do jeitinho que a gente queria desde o começo. Apagada. Vazia.
Elisa não respondeu. Não havia mais forças, nem fé. O tempo trancada naquele lugar frio e cruel tinha apagado as cores, calado os gritos, e matado qualquer esperança de justiça.
Ela não queria lutar. Não ali. Não mais.
A prima se inclinou mais perto, sussurrando como quem provoca uma ferida aberta:
— Você não perdeu só a liberdade, Elisa. Perdeu a si mesma.
E com isso, ela se afastou, deixando para trás o silêncio amargo de uma alma ferida demais para reagir.
Elisa respirou fundo. Contou até dez. Depois até vinte. Mas o ódio já não cabia mais dentro do peito. Crescia a cada visita, a cada provocação, a cada dose que a impedia de reagir.
Antes de sair, Marcela parou na porta e lançou um último olhar.
— Engraçado como tudo se encaixou, né? Você presa aqui, e eu com a vida que sempre sonhei... a vida que era pra ser sua.
E então saiu, deixando para trás o silêncio sufocante e o convite pousado como uma ferida aberta no colo de Elisa.
Elisa segurava o convite entre as mãos trêmulas. Papel espesso, letras douradas em alto-relevo, cheiro de perfume caro. Um lembrete cruel da vida que lhe foi arrancada. Observou cada detalhe por um instante, como se ainda quisesse se convencer de que tudo aquilo não passava de um pesadelo. Mas era real. E doía.
Com um movimento brusco, ela rasgou o convite ao meio. Depois, em pedaços menores. Até que não restasse mais nada além de fragmentos espalhados pelo chão frio do quarto. Lágrimas silenciosas escorriam por seu rosto pálido, mas ela não chorava de tristeza — chorava de exaustão.
— Chega... — murmurou, com a voz embargada. — Eu não aguento mais. Que isso acabe logo. Por favor... alguém me ouça. Eu não sou louca. Eu só quero que acabe.
Como se o universo finalmente atendesse ao seu pedido, um forte estrondo ecoou pelos corredores. Em segundos, gritos começaram a surgir de diferentes pontos do prédio. Um cheiro acre invadiu o quarto. Elisa se levantou, cambaleante, e olhou pelo vidro da porta.
O corredor estava tomado por fumaça. Clarões alaranjados se projetavam pelas paredes descascadas enquanto o fogo se espalhava rapidamente pelos andares inferiores. O teto estalava, madeiras rangiam como se gritassem de dor. Um enfermeiro passou correndo, tossindo, os olhos arregalados de pânico. Atrás dele, dois pacientes corriam descalços, gritando sem direção.
O caos se instalava. Gente empurrando, portas sendo arrombadas, alarmes que não funcionavam. As chamas lambiam as paredes, devoravam cortinas, móveis, colchões. Os gritos misturavam-se ao som do fogo estalando e da estrutura gemendo prestes a desabar.
Mas Elisa permaneceu ali, imóvel.
Ela caminhou lentamente de volta, sentou-se na beira da cama e observou a fumaça começar a invadir o ambiente. O calor aumentava, o ar ficava mais espesso, difícil de respirar. Ainda assim, ela manteve os olhos serenos.
— Obrigada... por me ouvir — sussurrou, fechando os olhos.
Não havia medo. Não havia desespero. Pela primeira vez em dois anos, Elisa sentia paz.
As chamas avançavam pelo corredor. A luz alaranjada tingia tudo com um tom de fim. E, no meio do caos, ela simplesmente esperou... pronta para ser libertada daquele inferno silencioso em que viveu desde que lhe roubaram a vida, a voz e a sanidade.
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Atualizado até capítulo 30
Comments
Elenita Muniz Coelho Silva
parece que vai ser uma história muito sofrida
2025-08-22
4
Vane Brito
que bom que voltou, estávamos com saudades
2025-08-22
2
Edna anjos
Que isso Elisa ,reage ,você é forte, Lute pelo que você quer,
Foge deste lugar
2025-08-26
0