As ruas não têm piedade.
Já faz… perdi a conta de quantos invernos. Talvez cinco, talvez cem. Para um gato comum, isso não faria diferença. Mas eu nunca fui comum.
Eu nasci humano. E morri humano.
Ou pelo menos, deveria ter morrido.
No momento em que o sangue deixou meu corpo, quando meus olhos se fecharam pela última vez, alguém… ou alguma coisa… me deu uma segunda chance. Não como homem, mas como isso: quatro patas, garras, pelos negros como a noite e olhos que enxergam muito mais do que deveriam.
Um castigo ou um presente?
Ainda não decidi.
A maldição que carrego é simples: só posso voltar à minha forma humana se receber um beijo verdadeiro. Não qualquer beijo… mas um que carregue inocência e pureza, algo quase impossível de encontrar no mundo podre em que vivo. Até lá, eu permaneço assim: um fantasma felino, condenado a vagar sem destino.
Os anos me ensinaram a sobreviver nas sombras. A máfia, os becos, os homens armados — eu conheço todos eles. Já vi sangue escorrendo em calçadas, ouvi gritos na madrugada e aprendi a me esconder antes que a bala me encontrasse.
Naquela noite, a chuva caía pesada, lavando a sujeira da cidade, mas nunca a maldade. Eu estava encolhido em um beco, tentando ignorar o frio que queimava até meus ossos. O cheiro de comida velha vinha das lixeiras, mas nem os ratos ousavam sair com aquela tempestade.
Foi então que a vi.
Um carro preto parou na rua. As portas se abriram e um homem alto, de terno, segurando um guarda-chuva, saiu primeiro. E então… ela apareceu.
Pequena, tão pequena que mal devia ter dois anos. Vestia um casaco rosa que contrastava com o cinza da noite. Os olhos dela — grandes e curiosos — se encontraram com os meus.
Ela sorriu.
E naquele instante, percebi que talvez meu destino estivesse prestes a mudar.
Mas eu não fazia ideia de quem era aquela criança… nem que ela era filha do homem mais perigoso que já pisou nesta cidade.
E assim começou a história de como um simples gato preto entrou na casa — e na vida — do Senhor Valrose.
Comments
Victoria Melo
Muito boa continua, por favor
2025-08-11
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