O som das sandálias sobre o mármore ecoava como gotas em pedra. Um rumor, como um sussurro sem dono, atravessava os corredores — uma lenda resfriada pelo tempo e aquecida novamente por medos ancestrais: os subterrâneos voltaram a se mover.
Elian não gostava de correr atrás de sombras, mas a escuridão parecia agora correr atrás dele.
Nos últimos dias, pequenas coisas passaram a mudar. Servos evitavam certas alas do castelo; os olhos da sacerdotisa de Aurora — mais sombrios que de costume — demoravam segundos demais sobre sua nuca. E, embora Thalion continuasse a segui-lo feito filhote de cão, seu pai, Lorde Varkas, falava cada vez menos em público e cada vez mais em reuniões fechadas.
Era ao entardecer — mesmo num mundo onde o sol jamais se punha — que as paranoias cresciam mais rápido.
Naquela manhã, uma túnica parda, pesada como lembrança, foi encontrada enroscada entre as raízes torcidas da fonte leste. Tecido Lunari, da cor das pedras noturnas. Nenhum costureiro da superfície admitiria tê-la tecido. Nem precisavam.
Elian a reconheceu pelo cheiro seco de argila — o mesmo cheiro que sentira uma única vez, quando sua mãe o segurava em seus braços. Aquela túnica não era de uma pessoa qualquer. Era de um Lunari legítimo.
Alguém — ou algo — subira à superfície.
— Isso é absurdo, murmurou Caelen, ao ver o pano estendido sobre a mesa de conselhos. Sua voz era gélida como sempre, mas havia nela um toque de incômodo. — Os subterrâneos não ousariam. E um Lunari puro jamais se misturaria a eles. Não existem mais desses. Só fanáticos degenerados.
— E se não forem boatos? — Elian respondeu, sem olhar nos olhos dele.
— Então que você desça e acenda um altar — ironizou Caelen. — Talvez o protetor do Oeste venha te ajudar com os ratos.
Elian cerrou os punhos.
A sala não era feita para gritos, mas o silêncio nela era sufocante. A sacerdotisa permanecia imóvel, como se a própria pedra do templo a mantivesse em posição. Seus olhos cinzentos se voltaram para Elian, carregados de reprovação não dita.
— Este reino não se equilibra em suposições — ela declarou. — Nem em paixões juvenis. O que você propõe, Alteza, não é mais que medo disfarçado de fé.
— E o que a senhora propõe? — ele rebateu, com menos raiva do que gostaria. — Esperar que nos derrubem de dentro? Ou negar que a terra está tremendo debaixo dos nossos pés?
A sacerdotisa endireitou a postura, o colar com os quatro nós dos Krophegar’s tilintando sobre o peito.
— O equilíbrio dos quatro cantos não se desmantela com rumores. Nosso papel é preservar a doutrina, não persegui-la.
...***...
Nos jardins internos, longe da tensão da câmara alta, Thalion aproximou-se do primo com olhos afoitos.
— Você acha que é verdade? Sobre os subterrâneos? E se forem eles... e se tiverem armas ou coisas piores? Magias? Monstros?
Elian se ajoelhou junto a uma flor branca que nascera numa fenda seca da fonte.
— A ameaça não está debaixo da terra, Thalion... Está no que fazemos com o medo dela.
O primo calou-se, olhando para o chão. Um sopro de angústia lhe apertava o peito. Ele queria ser como Elian, destemido, firme, mas às vezes era difícil quando o próprio pai só o elogiava quando agia como espelho, e não como pessoa.
Elian se levantou com a túnica Lunari dobrada nos braços. Seus olhos se perderam por um instante nas colunas distantes, e ali, à beira da luz, pensou ver algo — ou alguém — parado nas sombras. Um vulto de vestes escuras, imóvel.
Quando piscou, não havia mais nada.
À noite, Varkas caminhava sozinho pelos corredores do oeste. Seu manto prateado arrastava-se sobre o chão, e sua bengala, incrustada com símbolos do deus do Norte, marcava o ritmo de seus passos.
Dentro do seu escritório, cartas seladas com cera negra aguardavam entrega. Nenhuma delas fora escrita em língua solariana. E em seu anel, o brasão da família Noctaris havia sido levemente lixado, apagando o sol que antes ardia no topo.
No salão do trono, Elian encarava o mapa do reino, algo que retirou secretamente. Seu dedo percorria os túneis antigos — traçados em vermelho fraco — que cruzavam a base do palácio. Poucos sabiam de sua existência. E ele não sabia se seu tio as conhecia também. Nessa situação tensa que se encontra, ele era sua maior desconfiança.
Foi ali, sozinho com seus próprios pensamentos, que Caelen entrou.
— Vasculhando túneis? Esperava mais de alguém que se diz príncipe.
Elian não se virou. O tom seco de Caelen já não o atingia como antes. Ou talvez o atingisse mais fundo do que admitia.
— E eu esperava mais de alguém que se diz fiel à coroa — respondeu, com amargor. — Mas você parece mais empenhado em defender regras do que pessoas.
— Regras protegem pessoas. E você está brincando com os dois lados.
Eles ficaram frente a frente.
— Você me julga sem me ouvir — disse o príncipe. — Sempre julgou.
— Porque eu conheço homens como você — Caelen retrucou. — Filhos de lendas que pensam que nasceram para mudar o mundo. Mas tudo o que fazem é levá-lo à ruína.
Elian sentiu a garganta arder, mas não desviou o olhar.
— Se o mundo precisa ser ruído para renascer melhor... então que comece por mim.
...***...
Elian ainda sentia a presença da noite verdadeira em sua pele naqueles tempos na Instituição Alese, como se os fragmentos da escuridão que tocara nas terras subterrâneas estivessem alojados em sua carne. Algo mudou, mesmo agora sob o céu imutável e dourado de Tliwni, manchas de constelações cintilavam em seus ombros cada vez que se recolhia ao santuário em silêncio. Era como se a luz do sol eterno não mais conseguisse negar quem ele era: descendente de uma linhagem Lunariana antiga, por mais que sua aparência ainda camuflasse tal verdade. Agora já não era apenas seus olhos, violeta, mas sua carne. E não havia ninguém que pudesse lhe direcionar ou parar.
Os corredores do palácio tornaram-se mais densos com rumores. Ecos sussurrados como areia roçando contra pedra seca. Guardas murmuravam sobre aparições na orla da cidade — vultos pálidos que pareciam conhecer o terreno como se nascessem dele. Elian já os vira em sonhos, ou talvez em lembranças da infância: criaturas que se arrastavam sob o solo escaldante, com olhos como lamparinas apagadas e fé que já não pertencia aos deuses dos quatro cantos.
E agora, havia um deles à vista.
Nos fundos do templo, nas salas de oferendas aos Krophegar’s, Elian o viu pela primeira vez. Vestia trapos negros, e a pele era tão pálida quanto o mineral noturno que só se encontrava nas profundezas do Tliwni. Mas foi o olhar que o desestabilizou: olhos não de quem implora, mas de quem acusa.
— És filho do último rei de Aurora, não és? — perguntou o Lunari, em um sussurro que parecia ecoar entre os pilares. — O último herdeiro da fé… e da traição.
— Quem é você para falar de fé? — Elian respondeu com firmeza, apesar do arrepio que lhe percorria a espinha.
— Sou o que sobrou daquilo que vocês enterraram. Eu sou a fé deformada pela espera.
E sumiu como veio, sem que nenhum soldado o notasse.
Ao retornar ao salão principal, Elian encontrou seu primo Thalion com o rosto suado, ajoelhado diante do mapa cerimonial onde se marcavam rotas e alianças.
— Primo! — disse o rapaz, ofegante — Você viu? A fronteira Norte... alguém riscou o selo de proteção do Krophegar do Norte com cinzas. Cinzas, Elian! Isso é sacrilégio. É provocação.
— E alguém tão ousado não age sozinho — respondeu Elian, sem disfarçar a tensão. — Quem manipula as sombras sabe que a luz nunca perdoa.
Thalion pareceu hesitar, desviando os olhos.
— Papai não acredita que haja ameaça real. Diz que são apenas superstição para assustar a corte... Mas eu ouvi. À noite. Homens sussurrando nas cozinhas do leste do palácio, dizendo que as oferendas aos Krophegar’s estão sendo negadas.
Elian engoliu seco.
— Quem está negando? A sacerdotisa?
Thalion balançou a cabeça.
— Ela jura que os deuses apenas se calam para testar a devoção. Mas... alguns acólitos dizem que há interferência. Que alguém dentro da corte está... escondendo artefatos sagrados. Relíquias!
A tensão encontrou forma quando Caelen apareceu nos corredores do templo. O uniforme escuro impecável e o símbolo da Coroa em destaque no peito. Ele fitou Elian com o desdém característico, mas dessa vez, havia algo mais: um tom de acusação velada.
— Perambulando entre sacerdotes e sombras, Alteza? Ou devo chamá-lo de herdeiro da fé extinta?
Elian apertou os punhos.
— Cuidado com as palavras. A fé que chamas extinta sobrevive mais forte do que a sua devoção política.
— Eu sirvo à coroa. A coroa não teme velhos mitos — retrucou Caelen, aproximando-se um passo. — Mas teme filhos de traidores tentando usar o manto da fé para justificar revoltas.
Elian arfou, indignado.
— Não fale do que não sabe, Caelen. Não tem a mínima ideia do que está fermentando nos subterrâneos. Ou talvez tenha, e esteja apenas escolhendo ignorar.
Caelen inclinou a cabeça, observando-o com o mesmo olhar que usava ao medir um inimigo em campo de batalha.
— Sei apenas que a sua fé pode te cegar, e a cegueira não é qualidade que um herdeiro deva carregar. Se há movimentações no subterrâneo, lide com elas com espada, não com preces.
— E se a espada apenas alimentar o ódio? E se for isso o que eles querem? — retrucou Elian, o tom mais alto do que deveria.
Caelen não respondeu de imediato. Mas em seus olhos, havia um julgamento implacável. Um desafio. E, talvez, medo.
Naquela noite, o salão de conselhos foi convocado em sigilo. Apenas os nobres mais altos e os guardiões da fé foram chamados. Elian sentou-se ao lado de seu tio, o lorde Varkas, que não disfarçava o sorriso estreito.
— As palavras correm como serpentes entre os pilares — disse Varkas, em voz baixa. — Meu sobrinho, parece que tua volta trouxe mais inquietações do que estabilidade.
— Inquietações que talvez tenham raízes nas próprias paredes deste palácio — respondeu Elian, lançando um olhar afiado.
— Ou talvez... nos corações daqueles que não sabem para quem servem: aos deuses, ou a si mesmos?
Elian virou-se para o tio, tentando ler além do sarcasmo.
— Há algo que deseje confessar, tio?
— Apenas meu desapontamento com sua teimosia. Pensava que Alese teria te moldado como rei. Mas voltaste como sonhador.
E antes que Elian pudesse responder, a sacerdotisa entrou no salão, sua presença acompanhada por um cheiro de mirra e poeira antiga.
— Fomos tocados por forças que não compreendemos — declarou ela, colocando sobre a mesa um cristal esbranquiçado que parecia pulsar. — Um artefato dos tempos da Noite Maior foi encontrado sob a cripta do Oeste. Isso não acontece por acaso. Alguém está tentando convocar os Krophegar’s, ou desafiá-los.
O silêncio caiu como pedra.
Caelen falou por fim:
— Alteza, estás disposto a colocar o povo em risco por seguir os delírios do subterrâneo? Não vejo nobreza nisso. Vejo fraqueza.
Elian se ergueu.
— Fraqueza é ignorar os sinais por orgulho. Os Krophegar’s não dormem — disse. — Eles apenas observam.
E em seu peito, pela primeira vez em anos, o símbolo dos quatro cantos brilhou levemente.
...***...
Do lado de fora, oculto pela noite que não existia, o Lunari de linhagem pura caminhava entre sombras, tocando os túneis com mãos antigas.
— Que o herdeiro da aurora descubra logo... — murmurou ele, com a voz como vento entre dunas. — Porque quando a fé se junta à guerra, nem o sol eterno poderá protegê-los.
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Atualizado até capítulo 51
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