A chuva batia na estrutura metálica do telhado como se quisesse furá-lo. Do lado de dentro, o som ecoava abafado pelas paredes grossas de concreto, e pelo isolamento que eu mesmo montei com mãos sujas de tinta e sangue.
Acordei com os olhos secos. Não lembro da última vez que sonhei. E se sonhei… provavelmente morria no final.
Minha rotina começava do mesmo jeito havia anos. Não importava o país, a cidade, o esconderijo temporário. Eu acordava. Respirava. Sobrevivência automática. Como um cão treinado para matar, mas com consciência suficiente pra saber que já não era mais só um cão — era o próprio gatilho.
O sistema de segurança da casa estava intacto. Ninguém cruzava o portão sem eu saber. Eu não confiava em paredes. Confiava nas minhas armas, e nas armadilhas espalhadas por dentro.
Na cozinha, a chaleira chiava. Café preto, forte. Nada de açúcar. O açúcar amolece. E eu não podia me permitir isso.
Sentei na bancada de aço frio e abri o notebook. Tinha três contas abertas, todas em servidores diferentes, todas com criptografia dupla. Eu usava pseudônimos, números que trocavam a cada trabalho e rotas de IP que nem mesmo a polícia federal mexicana conseguiria rastrear.
Mas os clientes... sempre sabiam me achar.
Havia uma nova mensagem no e-mail prioritário.
Remetente: Jaguar (cliente antigo).
Assunto: Serviço especial.
Anexo: foto, dados, localização.
Pagamento: 250 mil.
Cliquei no anexo.
A conexão travou por dois segundos. Tempo suficiente pra minha mente vasculhar os piores rostos que eu já eliminei: pedófilos, traficantes, políticos que mandaram matar esposas e disfarçaram de suicídio.
Mas quando a imagem abriu…
Meu corpo congelou.
Não foi imediato. Não foi explosivo. Foi um reconhecimento lento, incômodo, como quando se vê o próprio reflexo depois de muito tempo. Os olhos dela estavam ali. Castanhos, mas fundos. Um olhar de quem já conhecia o abismo. O cabelo preso, rosto limpo, um colar simples no pescoço. Tinha algo de singelo naquela foto. Algo que não combinava com a morte.
Meu coração bateu duas vezes mais forte.
Ampliei a imagem.
— Não pode ser.
Desci a página.
Nome da vítima: Ana Laura Martinez dos Santos.
Idade: 23 anos.
Naturalidade: mexicana-brasileira.
Última localização: San Luis Potosí.
Status: alvo prioritário. Preferência por desaparecimento sem vestígios.
Valor: 250.000 pagos via cripto. Pagamento adiantado 30%.
Motivo: não revelado. Cliente anônimo, intermediado via Jaguar.
Soltei um palavrão baixo. Levantei da cadeira.
Me afastei da mesa, respirei fundo. Fui até a parede do fundo da sala e encostei a testa no concreto. Tinha a superfície fria e real. Precisava daquilo.
Não era qualquer alvo.
Era ela.
A garota.
A que eu quase matei atropelada. A que corri pra socorrer mesmo com sangue fresco de outro homem nas mãos. A que dormiu no meu sofá, ferida, muda, arrebentada por dentro.
A que não perguntou nada.
A que me agradeceu antes de ir embora.
Ela.
Agora com nome.
Agora com preço.
Voltei devagar à mesa. Olhei pra tela. O cursor ainda piscava, como se zombasse da minha hesitação.
Eu nunca recusei um contrato. Nunca. Era uma das minhas regras.
Aceitar e cumprir. Discrição. Precisão. Distância emocional.
Mas naquele momento, pela primeira vez em anos… eu hesitei.
Fechei o notebook com força.
Desliguei as luzes.
Fiquei sentado no escuro. A única claridade vinha das lâmpadas vermelhas dos sensores.
A lembrança dela me invadiu como uma facada lenta. O modo como tremia dormindo. Como sussurrava palavras que eu não entendia. Como se encolhia mesmo coberta.
Aquele medo... era antigo.
E eu conhecia esse tipo de trauma. Porque vi o mesmo na minha mãe. Antes de meu pai enforcá-la com o cinto dele. Porque quis economizar no dinheiro da fuga dela.
Odiava monstros que se vestiam de gente.
Mas odiava ainda mais quem tentava matar o que sobreviveu.
Abri o notebook de novo.
Fui até os metadados do arquivo enviado. A foto havia sido tirada num celular há poucos dias. Não era uma imagem pública. Era íntima.
E isso me dizia tudo.
O contratante conhecia Ana Laura pessoalmente.
Voltei ao e-mail. Respondi em código:
> Confirmo recepção. Verificando proximidade. Preciso de 48h.
Enviei.
Isso me daria tempo. Não pra matá-la, mas pra descobrir quem quer ela morta. E por quê.
Passei a noite seguinte em vigilância. Instalei software para rastrear movimentações de dados. Usei inteligência artificial para escanear redes sociais, identificar postagens, ligações entre nomes, familiares, eventos ligados à cidade.
O nome dela apareceu em uma publicação da universidade. Foto de uma cerimônia simples, ao lado de uma senhora idosa — a tal abuela que ela mencionara brevemente.
Mas foi o nome Santiago Gonzales que me chamou atenção. Marcado em uma legenda antiga: "Meu parceiro de estudos. Alguém que sempre me ajudou."
Aquele nome. Aquele rosto.
Era ele.
O garoto que me encarou com fúria no meio da estrada quando tirei Ana dos braços dele. O que disse ser noivo dela. O mesmo cujo olhar era podre até o osso.
Pesquisei o nome do pai dele: Alejandro Gonzales.
Pediatra renomado, dono de uma clínica particular. Vários prêmios, colunas em revistas médicas. Casado. Família tradicional.
Demais pra ser limpo.
Comecei a montar um quebra-cabeça que ninguém mais via.
Eles estavam por trás disso.
O pai. Ou o filho. Ou os dois.
Afinal… Ana Laura sabia de algo que eles não podiam deixar vir à tona.
Fechei o computador
Me levantei.
Fui até o cofre embutido atrás da estante. Retirei uma pistola SIG Sauer P320, duas facas de combate e um gravador oculto. Não era pra matar. Era pra gravar.
Alguém ia me dizer por que essa garota tinha preço.
E se ninguém dissesse… eu ia descobrir do meu jeito.
Mas uma coisa era certa:
Eu não ia matá-la.
Não ainda.
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Atualizado até capítulo 60
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