O som do motor ainda ecoava em algum canto distante. Meu corpo não respondia. Tudo estava escuro, pesado, como se eu tivesse sido engolida por alguma força invisível. Não havia dor — ainda. Só um silêncio denso e um gosto metálico na boca.
— Está viva… — murmurou uma voz masculina, grave, calma demais para alguém que acabara de ver um corpo no asfalto.
Ele ajoelhou ao meu lado, os faróis do carro iluminando o contorno do meu corpo caído no meio da pista. A calçada ao lado, rachada, testemunhava o impacto. O sangue escorria de um corte na minha testa, misturando-se ao calor do chão. Ele não gritou. Não se desesperou. Apenas observou. Em silêncio.
Era Marcos García. Um nome que ninguém ali conhecia. Um rosto que não constava em registros. Um homem que vivia entre sombras e que, ironicamente, naquele momento, foi o único que enxergou o que estava diante dele.
— Ela não correu de um carro. Ela correu de alguém.
De dentro da jaqueta escura, puxou um pano e limpou a própria mão. O volante ainda estava manchado. Sangue fresco. Não dela. Do homem que ele havia matado minutos antes, atrás de um galpão abandonado a poucos quilômetros dali. Uma execução limpa. Como todas as outras.
Seu carro, uma Bugatti Chiron pintada em Vantablack, parecia mais uma criatura viva do que um veículo. Invisível na noite, monstruosa na presença.
Ele pegou Ana Laura nos braços, com cuidado. Ela estava leve. Frágil demais para aquele mundo. Quando já a colocava no banco de trás, ouviu passos apressados vindo da direção oposta.
— HEY! — gritou uma voz.
Era Santiago. Suado, descomposto, com os olhos arregalados, mas não de medo. Havia raiva. E uma urgência doentia no seu jeito de andar.
— Ela é minha noiva! Me dá ela aqui! Eu vou levá-la pro hospital!
Marcos encarou o rapaz por três segundos. Não mais que isso. Olhou fundo, analisando o tom da voz, o suor frio na testa, a respiração irregular, o leve tremor na mandíbula.
Ele já tinha visto aquilo antes.
Não era pânico. Era perda de controle. Era desespero por ver sua presa sendo levada.
— Tira as mãos dela — disse Marcos, com a voz baixa, mas letal.
Santiago se aproximou mais um passo.
— Ela precisa de ajuda! Eu sou o noivo, entendeu? Ela me conhece! Eu vou cuidar dela!
Marcos deu uma risada seca, sem humor.
— Não com esse olhar, você não vai.
— O quê?
— Eu conheço o seu tipo, garoto. Já vi homens assim no fim da vida, de joelhos, implorando pra não morrer com a garganta cortada. Todos com esse mesmo olhar.
Santiago avançou meio passo.
Marcos tirou uma faca do coldre escondido na cintura e apontou sem hesitar. Nem tremia.
— Mais um centímetro e você não acorda amanhã.
Santiago congelou.
— Você vai se arrepender disso. Eu juro por Deus que vai.
— Então reza pra Ele estar ouvindo, porque hoje você vive por um fio. Agora desaparece.
Santiago recuou, sem coragem de desafiá-lo. Sumiu na escuridão correndo como um rato acuado.
Marcos voltou o olhar para Ana Laura. O sangue na lateral do rosto já começava a secar. Havia hematomas no braço esquerdo. Um roxo leve no pescoço. Ele notou tudo, sem demonstrar emoção. Mas por dentro... algo se acendeu. Algo que ele não reconhecia fazia tempo.
Empatia.
— Merda… — murmurou, abrindo a porta traseira do carro e ajeitando-a nos bancos cobertos com couro preto.
Não podia ir ao hospital. Não daquele jeito. Sujo de sangue, com a arma ainda presa na cintura, os documentos forjados no porta-luvas. Além disso, sabia que um hospital faria perguntas. E ela não podia ser entregue a mais ninguém naquele momento. Estava vulnerável. Fraca. E o predador ainda estava por perto.
Acelerou.
Deixou San Luis Potosí para trás como se fugisse do próprio inferno. As luzes da cidade se apagaram no retrovisor. À frente, só a estrada escura em direção a Real de Catorce, a cidade fantasma onde ele morava. Onde ninguém perguntava nada. Onde o silêncio era lei.
Ana gemia baixinho. Ainda inconsciente. Em meio ao balanço do carro, suas mãos se moviam às vezes, como se buscassem algo. Marcos não olhava para trás, mas ouvia.
Ele ligou o rádio. Estática. Mudou de frequência. Parou numa canção instrumental suave. Algo que não ouvia há anos. Respirou fundo. Algo estava diferente. Aquela garota não era parte do seu mundo.
Mas agora estava nele.
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Atualizado até capítulo 60
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