O Caso dos Irmãos Fantasmas

Capítulo 5

O Caso dos Irmãos Fantasmas

As manhãs de segunda-feira costumavam ser especialmente carregadas na Escola Carolina de Andrade. Os alunos chegavam trazendo não apenas mochilas, mas também o peso do fim de semana — as brigas em casa, as ausências, as saudades, as pequenas alegrias. Fátima já percebia, nos olhares mais baixos e nos sorrisos contidos, quando algo diferente pairava no ar. Naquela segunda-feira, porém, sentiu que havia algo ainda mais denso, como uma névoa silenciosa atravessando os corredores.

Logo cedo, dona Hilda a chamou à sala da direção. O semblante da diretora estava tenso.

— Fátima, precisamos conversar sobre algo delicado. Recebemos uma ligação anônima ontem à noite. A pessoa disse que há duas crianças frequentando a escola, mas que não constam nos registros. Irmãos, aparentemente, que vêm e vão sem que os professores percebam. E há rumores de que moram sozinhos, em uma casa abandonada perto do rio.

Fátima sentiu um frio na espinha. Mais do que um mistério administrativo, aquilo soava como um pedido de socorro vindo das sombras.

— Ninguém sabe nomes, idades, nada? — Fátima quis saber.

— Não. Alguns alunos disseram que já brincaram com eles. Outros afirmam que nunca viram. Os professores também não reconhecem. Mas temos relatos de merendeiras que notaram comida sumindo da cantina fora do horário. E, no recreio, dizem que há sempre duas sombras a mais no pátio.

A psicóloga anotou tudo, os dedos tremendo levemente. “Fantasmas”, pensou. Não fantasmas do outro mundo, mas da margem da sociedade: crianças invisíveis, sem documentos, sem lar, com fome e medo.

Decidiu agir com cautela. Naquela manhã, organizou uma roda de conversa com uma das turmas do ensino fundamental. Usou um tema aparentemente simples: “Quem são seus amigos?”. Incentivou os alunos a desenharem as pessoas com quem mais gostam de brincar.

Enquanto passava entre as carteiras, reparou nos desenhos de uma menina chamada Rita. No papel, havia duas figuras desenhadas à lápis, sem cor, ao lado de um grupo de crianças coloridas.

— Quem são esses dois aqui, Rita? — perguntou.

A menina, olhando desconfiada, respondeu:

— São meus amigos do rio. Eles moram lá. Às vezes vêm brincar, mas não podem entrar na escola porque têm medo.

— Medo de quê?

— De gente grande. Eles dizem que, se alguém descobrir, vão separar eles.

O coração de Fátima acelerou. Ali estava, enfim, a primeira pista concreta.

Nos dias seguintes, ela intensificou a escuta nos corredores. Conversou com outras crianças, merendeiras, professores. A cada relato, o mistério dos “irmãos fantasmas” ganhava contornos de realidade. Havia descrições vagas: um menino mais velho, protetor, e uma menina mais nova, de olhar assustado. Nomes? Só apelidos: Zé e Cida.

Fátima sabia que não podia agir de forma precipitada. Qualquer movimento brusco poderia assustar as crianças e afastá-las ainda mais. Decidiu, então, pedir ajuda ao professor Álvaro, cuja sensibilidade já conhecia.

— Álvaro, você lembra de ver crianças novas, que não participam das aulas, mas ficam na escola?

— Já vi dois pequenos rondando o pátio, mas achei que fossem irmãos de algum aluno do turno da tarde. Nunca conversei.

— Precisamos encontrar um jeito de nos aproximar sem assustá-los. Talvez se eu for ao rio, durante o almoço, possa vê-los.

E assim, no dia seguinte, Fátima caminhou até a margem do rio que cortava a cidade, um lugar onde poucas crianças brincavam por causa da correnteza e do mato alto. O silêncio era profundo, quebrado apenas pelo som da água e pelo vento nas árvores. Depois de alguns minutos, ouviu risadas abafadas — dois rostinhos surgiram por entre as moitas.

Ela não se aproximou de imediato. Sentou-se numa pedra, tirou da bolsa uma maçã e um pão, e começou a comer, fingindo distração. Os irmãos se aproximaram devagar, observando-a com olhos atentos e famintos.

— Oi — disse Fátima, sorrindo. — Vim descansar um pouco. Vocês gostam daqui?

O menino assentiu, desconfiado, protegendo a irmã atrás de si.

— Querem dividir um pedaço de pão?

Hesitantes, aceitaram. Enquanto comiam, Fátima puxou conversa, evitando perguntas diretas.

— Meu nome é Fátima. Trabalho ali na escola. Gosto de ouvir histórias. Vocês têm alguma história pra me contar?

A menina, Cida, olhou para o irmão. Ele fez um gesto afirmativo.

— A gente morava com a nossa avó. Ela foi pro céu. Depois, a gente veio pra cá. Não temos casa. Só o barraco ali no mato.

Fátima sentiu um nó na garganta. Perguntou, com delicadeza:

— Vocês vêm na escola porque gostam de brincar?

O menino, Zé, respondeu:

— A gente gosta de ver as crianças. E, às vezes, tem comida.

Fátima percebeu ali um desejo profundo de pertencimento, misturado ao medo do abandono. Prometeu a si mesma que faria tudo ao seu alcance para garantir que aquelas crianças fossem vistas — e protegidas.

Naquela mesma tarde, conversou com a diretora e o Conselho Tutelar. Decidiram agir discretamente, oferecendo ajuda sem exposição, respeitando o tempo dos irmãos. Fátima passou a visitar o rio todos os dias, levando comida, roupas e, principalmente, sua presença acolhedora.

Aos poucos, os irmãos se abriram. Contaram sobre a avó, sobre noites frias, sobre o medo de serem separados. Fátima registrou cada detalhe, buscando formas de inserir as crianças no sistema escolar e de garantir suporte social. Com a ajuda de dona Olga, mobilizou vizinhos para arrecadar mantimentos e roupas.

O caso dos irmãos fantasmas correu discretamente pela cidade, despertando solidariedade e também debates sobre invisibilidade social, abandono e responsabilidade coletiva.

Ao final de um mês, Zé e Cida já frequentavam a escola oficialmente. Ainda tímidos, mas sorrindo mais, participavam das atividades e buscavam refúgio na sala de Fátima sempre que o medo batia à porta.

Para a psicóloga, aquele caso representou um marco: a certeza de que, quando a escuta é verdadeira, até as histórias mais doloridas podem ser transformadas em novas possibilidades.

Na última página do caderno, ela escreveu:

"Toda criança quer ser vista. Toda dor pede um nome. Quando acolhemos nossos fantasmas, damos a eles a chance de virar futuro."

E, naquela escola onde antes sobravam sombras, começaram a surgir novos laços, novas histórias — e a esperança de que, juntos, ninguém mais precisaria ser invisível.

Capítulos
1 O Primeiro Sussurro
2 A Chegada à Cidade Nova
3 Ecos da Infância
4 Segredos Entrelaçados
5 O Caso dos Irmãos Fantasmas
6 Entre Quatro Paredes
7 O Dossiê da Dor
8 Vozes do Passado
9 O Peso das Palavras
10 Quando a Cidade Adoece
11 Sobreviventes e Semeadores
12 Novo livro
13 O Abraço da Comunidade
14 Novas Raízes
15 O tempo da colheita
16 O Futuro em Flor
17 Roda de Conversas Virtuais
18 O Jardim da Memória
19 Crianças com Novos Olhares
20 Marcas Invisíveis
21 O Projeto “Sobreviventes e Semeadores”
22 Samuel, o Menino Novo
23 O Conselho das Crianças
24 Pais e Mães: Feridas e Recomeços
25 Professores e Reinvenções
26 A Horta Comunitária
27 Conflitos e Preconceitos
28 Pequenas Vitórias do Cotidiano
29 A Festa do Reencontro
30 Novos Sonhos, Novos Desafios
31 Pertencimento – O Futuro que se Planta Agora
32 A Voz das Crianças: O Conselho se Reinventa
33 Aprender com o Erro – Quando as Coisas Não Saem Como o Esperado
34 O Papel dos Avós – Memória Viva na Escola
35 Novos Professores, Novas Perspectivas
36 A Tecnologia Chega ao Cotidiano
37 Sustentabilidade em Ação – O Projeto Ambiental
38 Entre Línguas e Culturas – A Diversidade que nos Une
39 O Papel do Lúdico – Brincar para Pertencer
40 Entrelaçando Histórias –Projetos de Vida e Sonhos Coletivos
41 O Legado do Pertencimento – Encerramento e Novos Começos
Capítulos

Atualizado até capítulo 41

1
O Primeiro Sussurro
2
A Chegada à Cidade Nova
3
Ecos da Infância
4
Segredos Entrelaçados
5
O Caso dos Irmãos Fantasmas
6
Entre Quatro Paredes
7
O Dossiê da Dor
8
Vozes do Passado
9
O Peso das Palavras
10
Quando a Cidade Adoece
11
Sobreviventes e Semeadores
12
Novo livro
13
O Abraço da Comunidade
14
Novas Raízes
15
O tempo da colheita
16
O Futuro em Flor
17
Roda de Conversas Virtuais
18
O Jardim da Memória
19
Crianças com Novos Olhares
20
Marcas Invisíveis
21
O Projeto “Sobreviventes e Semeadores”
22
Samuel, o Menino Novo
23
O Conselho das Crianças
24
Pais e Mães: Feridas e Recomeços
25
Professores e Reinvenções
26
A Horta Comunitária
27
Conflitos e Preconceitos
28
Pequenas Vitórias do Cotidiano
29
A Festa do Reencontro
30
Novos Sonhos, Novos Desafios
31
Pertencimento – O Futuro que se Planta Agora
32
A Voz das Crianças: O Conselho se Reinventa
33
Aprender com o Erro – Quando as Coisas Não Saem Como o Esperado
34
O Papel dos Avós – Memória Viva na Escola
35
Novos Professores, Novas Perspectivas
36
A Tecnologia Chega ao Cotidiano
37
Sustentabilidade em Ação – O Projeto Ambiental
38
Entre Línguas e Culturas – A Diversidade que nos Une
39
O Papel do Lúdico – Brincar para Pertencer
40
Entrelaçando Histórias –Projetos de Vida e Sonhos Coletivos
41
O Legado do Pertencimento – Encerramento e Novos Começos

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