Capítulo 2
A Chegada à Cidade Nova
Desembarcar em uma cidade desconhecida é como acordar de um sonho e perceber que a realidade tem outros cheiros, outros sons, outros ritmos. Para Fátima, a chegada à cidade nova foi marcada por uma mistura de encantamento e estranhamento, como se cada esquina escondesse uma história esperando para ser desvendada.
Na primeira manhã, depois do breve encontro com dona Hilda e da acolhida reservada de Lúcia, Fátima decidiu caminhar sem pressa pelas ruas do centro. Seu olhar buscava, mais do que pontos turísticos, os sinais da vida cotidiana: o senhor com o chapéu de palha varrendo a calçada, o grupo de adolescentes rindo alto na praça, a senhora de avental pendurando roupas no quintal. Tudo era novo, mas carregava uma familiaridade difusa, como se a cidade respirasse memórias de outros lugares por onde ela já passara.
O apartamento simples, localizado sobre uma farmácia, logo ganhou pequenos toques de aconchego. Fátima pendurou uma cortina azul claro na janela, organizou seus livros de psicologia e literatura na estante improvisada e, com delicadeza, colocou um vaso de violetas sobre a mesa de jantar. Aqueles gestos, repetidos tantas vezes em outros recomeços, davam-lhe uma sensação de identidade em meio ao desconhecido.
Naquele início, a solidão era sua principal companhia. As noites eram silenciosas, pontuadas apenas pelo som distante de um rádio ligado em alguma casa vizinha ou pelo latido esporádico de um cachorro. Fátima aproveitava esses momentos para reler suas anotações, planejar atividades para os atendimentos na escola e, sobretudo, para se escutar. Tinha aprendido, ao longo dos anos, que só quem se permite ouvir a própria alma pode, de fato, acolher a dor alheia.
O segundo dia de trabalho trouxe novos desafios. Logo cedo, dona Hilda a recebeu com um sorriso cansado e um convite para um café na sala da direção.
— Sei que o início é difícil — confessou, mexendo o açúcar distraidamente. — As crianças daqui carregam mais do que mochilas pesadas. Muitas vêm de famílias marcadas por perdas, separações, dificuldades financeiras. Nem sempre vão confiar em você de imediato.
Fátima escutou atentamente, sentindo o peso das palavras e a responsabilidade que lhe era confiada.
— Quero ajudar, dona Hilda. Mas sei que preciso de tempo para conquistar a confiança deles.
— Tempo — repetiu a diretora, pensativa. — Às vezes, é tudo o que não temos.
Enquanto sorvia o café quente, Fátima notou as paredes da sala da diretora. Fotografias antigas de festas juninas, formaturas, professores que já se aposentaram. Havia uma sensação de continuidade, de pertencimento, que ela admirava e, ao mesmo tempo, desejava conquistar. Percebeu que cada rosto naquelas fotos era também uma história, um ciclo de dores e alegrias, e que ela estava prestes a se tornar parte desse tecido vivo da cidade.
Depois do café, Fátima foi apresentada formalmente aos professores. Entre eles, conheceu o professor Álvaro, responsável pela turma do quinto ano. Ele era um homem de meia-idade, olhar atento e fala pausada.
— Seja bem-vinda, Fátima — disse, apertando-lhe a mão com firmeza. — Vai perceber que, por aqui, cada aluno é um universo. E cada universo tem seus próprios mistérios.
A frase ficou ecoando na mente de Fátima ao longo do dia. Durante o recreio, ela observou as crianças e adolescentes reunidos em pequenos grupos, alguns brincando, outros apenas olhando de longe, como Lúcia fizera no dia anterior. Notou também um grupo de meninas sentadas no fundo do pátio, cochichando entre si e lançando olhares furtivos para um menino franzino que parecia alheio ao mundo.
Aos poucos, os professores começaram a compartilhar impressões e preocupações em conversas rápidas nos corredores.
— O Anderson, da turma da manhã, tem chegado sempre atrasado — comentou uma professora, baixando a voz. — A mãe dele está doente.
— A Mariana parece diferente desde que o pai foi embora — confidenciou outra. — Não fala mais com ninguém.
Fátima ouviu cada relato com atenção, anotando detalhes em seu caderno para investigar depois. Sabia que, muitas vezes, os sinais de sofrimento estavam nas pequenas mudanças de comportamento, nos olhares fugazes, nos silêncios prolongados.
Ao retornar à sua sala, encontrou sobre a mesa um envelope sem remetente. Dentro, um bilhete escrito com letra miúda e trêmula:
"Doutora, me disseram que a senhora escuta sem julgar. Preciso falar de um segredo, mas tenho medo. Promete que não vai contar para ninguém?"
Fátima sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Reconhecia ali o primeiro convite silencioso para adentrar o universo íntimo de alguém. Pegou seu caderno e anotou: "A escuta começa antes da palavra. Às vezes, o pedido de ajuda vem na forma de um bilhete, de um olhar, de um silêncio."
Ao sair da escola, decidiu explorar a vizinhança. Caminhou até a praça central, onde crianças jogavam bola enquanto idosos conversavam nos bancos de pedra. Parou em frente à igreja matriz, admirando a arquitetura simples e o sino que badalava a cada hora cheia. Ao lado da igreja, uma pequena livraria chamou sua atenção. Entrou, cumprimentada por um senhor de barba branca e sorriso acolhedor.
— Boa tarde, minha filha. Nova na cidade?
— Sim, acabei de chegar. Trabalho na escola como psicóloga.
— Que bom! Aqui precisamos de gente que escute. As pessoas sentem falta de escuta, sabe? — disse ele, com um brilho nos olhos.
Fátima sorriu, sentindo-se acolhida. Folheou alguns livros, comprou um caderno novo e saiu prometendo voltar. A sensação de pertencimento, mesmo que discreta, começava a germinar.
O fim da tarde trouxe uma leve garoa, e Fátima apressou o passo de volta ao apartamento. No caminho, cruzou com uma jovem mãe empurrando um carrinho de bebê e duas adolescentes discutindo sobre o dever de casa. Tudo parecia comum, mas Fátima sabia que, por trás da rotina, havia histórias esperando para serem ouvidas.
Ao chegar em casa, preparou um chá de camomila e sentou-se junto à janela, contemplando o vai e vem da rua. Pensou em sua família, distante, e no quanto sua presença ali era também uma tentativa de se encontrar. Lembrou-se de sua própria infância, das vezes em que desejou ser ouvida sem medo, sem julgamento, e percebeu o quanto aquela experiência a preparara, ainda que de forma dolorida, para o papel que agora assumia.
Naquela noite, enquanto preparava o jantar — uma sopa simples de legumes —, lembrou-se do cheiro da cozinha de sua avó, das conversas sussurradas ao redor da mesa, das pequenas confidências trocadas entre colheradas. Era ali, no cotidiano, que as dores se tornavam suportáveis, que os segredos ganhavam nome e, às vezes, encontravam cura. Fátima desejou poder recriar, para seus futuros pacientes, esse espaço de acolhimento que tanto lhe fizera falta.
Mais tarde, ao reler o bilhete anônimo, sentiu o peso da confiança depositada ali. Decidiu responder, escrevendo um pequeno recado para ser deixado em sua sala:
"Quem quiser conversar, pode procurar a doutora Fátima. Aqui, segredo é respeitado, e ninguém é obrigado a falar. Às vezes, só estar junto já ajuda."
No dia seguinte, ao chegar à escola, Fátima foi surpreendida pela visita de um menino chamado Caio, de olhos grandes e sorriso tímido. Ele não disse muito, apenas pediu para desenhar enquanto ela organizava os papéis. Fátima percebeu que, para algumas crianças, o simples gesto de estar presente já era suficiente para iniciar um processo de confiança.
— O que você gosta de fazer, Caio?
— Gosto de inventar histórias — respondeu ele, quase sussurrando.
Fátima sorriu, incentivando-o a contar uma de suas invenções. Caio falou de um super-herói invisível, que ajudava as pessoas sem que elas percebessem. Ouvindo-o, Fátima compreendeu que, muitas vezes, o sofrimento infantil se disfarça de fantasia, e que era preciso sensibilidade para ler os sinais por trás das palavras.
No intervalo, Fátima ficou observando o pátio. Viu a menina Lúcia de longe, sentada sob uma árvore, folheando um livro velho. Tentou se aproximar, mas percebeu que a criança ainda precisava de tempo. Respeitou seu espaço, decidindo que, no momento certo, Lúcia se abriria.
O professor Álvaro se aproximou, trazendo um café para ela.
— Já percebeu que aqui as crianças têm olhos de adultos? — comentou, olhando para o pátio. — Às vezes, penso que cresceram antes da hora.
Fátima assentiu, sentindo a verdade na observação do colega.
— Mas também vejo esperança — completou ela. — Crianças são resilientes. Só precisam de alguém que as ajude a lembrar disso.
Naquela semana, Fátima visitou também a unidade de saúde do bairro, onde foi apresentada à enfermeira Célia e ao médico Dr. Ricardo. Ali, ouviu relatos de casos marcantes: adolescentes engravidando cedo, crianças vítimas de violência doméstica, idosos solitários. Sentiu-se, por vezes, sobrecarregada com a quantidade de sofrimento, mas também encontrou força na parceria e na vontade coletiva de transformar a realidade.
À noite, em seu apartamento, Fátima passou a escrever pequenas crônicas sobre o cotidiano da cidade. Era seu modo de processar as emoções, de transformar o peso do dia em aprendizado. Nessas linhas, relatava tanto os desafios quanto os pequenos milagres: o abraço inesperado de uma criança, o sorriso de gratidão de uma mãe, o olhar de esperança de um colega. Percebeu que, apesar da dureza, havia ali uma beleza discreta, uma rede de afetos que tornava tudo mais leve.
O domingo chegou trazendo a primeira visita ao mercado municipal. Entre barracas de frutas, legumes e pães frescos, Fátima ouviu conversas animadas, risos e até discussões acaloradas. Comprou flores, frutas e um pedaço de queijo, sentindo-se mais integrada à vida da cidade. Ao retornar para casa, trocou algumas palavras com a vizinha do andar de baixo, dona Olga, que a convidou para um café no próximo fim de semana. Fátima aceitou, sentindo que, pouco a pouco, ganhava raízes naquele novo solo.
Em meio à rotina, o bilhete anônimo continuava a ocupar seus pensamentos. Quem seria seu autor? Qual segredo pesava tanto a ponto de impedir a fala? Decidiu intensificar sua presença nos corredores, sorrir para quem cruzava seu caminho, oferecer escuta sem pressa. Sabia que, cedo ou tarde, a confiança surgiria — e, com ela, viria também a responsabilidade de acolher e proteger.
Antes de dormir, Fátima olhou pela janela, contemplando as luzes tênues da cidade adormecida. O silêncio era, para ela, ao mesmo tempo desafio e promessa. Escreveu em seu caderno:
"Aqui, cada dia é um convite à escuta. Vou aprender a ouvir a cidade, seus sussurros, seus gritos, seus silêncios. E, assim, quem sabe, ajudar a transformar histórias de dor em histórias de esperança."
Assim, entre o desconhecido e o desejo de fazer a diferença, a chegada à cidade nova se tornava o primeiro capítulo de uma longa jornada de coragem, escuta e transformação — não só para Fátima, mas para todos os que cruzassem seu caminho.
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Atualizado até capítulo 41
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