O som do celular batendo no chão de madeira foi o som de um universo se partindo.
Para Cíntia, o mundo se inclinou em seu eixo. O ar em seu ateliê, normalmente preenchido com o cheiro reconfortante de tinta e aguarrás, de repente ficou rarefeito, sufocante. Ela recuou do aparelho caído como se fosse uma serpente, o coração batendo descontroladamente contra suas costelas, um pássaro enjaulado tentando escapar.
A imagem na tela era uma profanação. Uma violação de sua própria identidade. Aquele rosto... era seu. Mas a alma por trás daqueles olhos era de uma estranha. Uma predadora. A menção de Eulália Morgana não era uma faca, era a mão que a torcia, tornando a ameaça inegavelmente real.
Quem? Por quê?
Sua primeira, instintiva, reação foi ligar para Vitoriano. Correr para seus braços, mostrar a ele aquela imagem monstruosa e deixá-lo consertar o mundo que acabara de quebrar. Ele a protegeria. Ele sempre a protegia.
Mas as palavras na mensagem ecoavam em sua mente como um mandamento de gelo: Se contar a alguém, especialmente ao seu noivo, eu desapareço. E você nunca saberá a verdade.
A verdade. Uma palavra que, até aquele momento, ela acreditava possuir. Sua vida era uma tela simples e lindamente pintada. Agora, ela suspeitava que por baixo daquela tinta havia um esboço horrível que ela nunca soube que existia.
Ela estava tão imersa em seu pânico que não ouviu a porta se abrir.
"Cíntia?"
A voz de Vitoriano a fez pular, e ela se virou com um grito contido. Ele estava ali, o amor de sua vida, parecendo uma âncora em seu mar de caos. Mas, pela primeira vez, sua presença não era um conforto. Era um perigo.
"Vitoriano! Você me assustou", disse ela, a voz mais aguda do que o normal. Ela rapidamente se abaixou, pegando o celular e enfiando-o no bolso do avental, a tela virada contra sua coxa.
Ele franziu a testa, seus olhos perspicazes captando a palidez de seu rosto, a tensão em seus ombros. "Você está bem? Parece que viu um fantasma."
Eu vi, ela pensou histericamente. Eu vi o meu próprio fantasma.
"Não, eu só... estava muito concentrada", ela mentiu, forçando um sorriso que parecia frágil, quebradiço. Foi a primeira mentira significativa que ela contou a ele, e o gosto era amargo como fel em sua boca.
Ele se aproximou, envolvendo-a em seus braços, e ela teve que lutar contra o impulso de se encolher. Seu abraço, seu santuário, agora parecia uma gaiola. "Você tem estado... distante. Desde a noite da galeria", ele murmurou contra seu cabelo. "Se algo estiver errado, você pode me dizer."
Ela fechou os olhos, inalando o cheiro dele, uma mistura de colônia cara e dele mesmo. A vontade de desmoronar, de confessar tudo, era uma dor física. Mas a imagem daqueles olhos frios e calculistas a deteve. Aquela mulher queria algo. E usar a confiança dela com Vitoriano como arma era o primeiro movimento.
"Estou bem, de verdade", ela sussurrou, afastando-se o suficiente para lhe dar um beijo rápido e sem fôlego. "Só um pouco de pressão com uma nova encomenda. Você sabe como eu fico."
Vitoriano não parecia convencido. O brilho da dúvida que Alana havia plantado dias antes encontrou um novo solo para crescer. Ele olhou para ela, buscando a mulher transparente que amava, mas encontrou uma cortina que não conseguia atravessar.
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Enquanto isso, do outro lado da cidade, no antro fétido de Alana, o clima era de celebração sombria.
Rômulo voltou, o cheiro de chuva e exaustão agarrado a ele. Ele jogou um molho de chaves de metal enferrujado na mesa.
"Encontrei", disse ele, a voz rouca. "Uma velha fábrica têxtil abandonada a uma hora daqui. Não há nada em quilômetros, exceto árvores e silêncio. O porão é... adequado."
Alana, que estava limpando as unhas com uma lixa, olhou para cima. Seus olhos verdes brilhavam com uma luz febril. Ela não perguntou se era seguro ou limpo. Ela não se importava.
"Perfeito", ela sibilou. O som era o de uma serpente satisfeita. "A isca foi enviada. A esta altura, nossa pequena artista está se contorcendo no anzol."
"Você acha que ela virá? Sozinha?", Rômulo perguntou, uma ponta de nervosismo em sua voz.
Alana levantou-se e caminhou até ele, sua presença enchendo o pequeno espaço com uma energia perigosa. Ela colocou a mão em seu peito, sentindo o coração dele bater um pouco mais rápido.
"Ela é boa. Bondosa. Curiosa", disse Alana, saboreando cada palavra como se fossem veneno. "Pessoas como ela são definidas pela necessidade de entender, de perdoar. Ela não consegue conviver com um segredo. A menção a Eulália a garante. A ameaça de eu desaparecer a impede de contar a Vitoriano. Ela virá. É o seu defeito de fabricação."
Seu sorriso era lento, predatório e desprovido de qualquer calor. "Prepare o carro. Amanhã à noite, a cortina se abre para o primeiro ato."
...****************...
As horas que se seguiram foram uma tortura para Cíntia. A noite foi sem sono. Cada sombra em seu quarto parecia tomar a forma da mulher da foto. De manhã, ela tentou pintar, mas suas mãos tremiam demais. O mundo ao seu redor havia perdido a cor, reduzido aos tons sombrios de medo e incerteza.
Ela olhou para o próprio reflexo no espelho e, pela primeira vez, se sentiu uma estranha em sua própria pele.
A noite caiu como um sudário sobre a cidade. 21:30. Era hora.
Ela trocou o avental manchado de tinta por jeans e uma jaqueta escura. Sem joias. Sem nada que chamasse a atenção. Ela pegou as chaves do carro, as mãos geladas. Vitoriano ligou duas vezes. Ela deixou cair na caixa postal, o coração apertado de culpa a cada toque.
A viagem para o antigo Teatro Ópera foi uma jornada para o submundo. Ela deixou para trás as ruas bem iluminadas de seu bairro nobre e mergulhou em distritos esquecidos, onde os postes de luz piscavam ou estavam mortos e os prédios pareciam esqueletos contra o céu sem estrelas.
O teatro era uma carcaça em ruínas, um monumento ao abandono. O estacionamento estava vasto e vazio, exceto por poças de água da chuva que refletiam a escuridão como olhos negros. Ela estacionou o carro, desligou o motor e o silêncio que se seguiu foi absoluto, esmagador.
Seu coração martelava em seus ouvidos.
Isto é uma loucura.
Mas a necessidade de saber era mais forte que o medo. Com a respiração presa na garganta, ela abriu a porta do carro. O clique da fechadura soou como um tiro na noite silenciosa. Ela se levantou, o ar frio da noite envolvendo-a.
Ela estava completamente sozinha.
"Olá?", sua voz saiu fraca, um fiapo de som engolido pela imensidão vazia. "Tem alguém aí?"
Silêncio.
Então, um som atrás dela. O som suave de um sapato em cascalho molhado.
Antes que Cíntia pudesse se virar, uma mão firme cobriu sua boca, abafando seu grito aterrorizado. Um braço forte envolveu sua cintura, prendendo-a contra um corpo duro e masculino. O cheiro de colônia barata e cigarro a invadiu.
Mas foi a voz, um sussurro diretamente em seu ouvido, um sopro de ar quente que fez seu sangue gelar, que quebrou sua alma.
Não era a voz do homem que a segurava.
Era uma voz de mulher. Uma voz que era uma cópia perfeita, assustadora e venenosa da sua.
"Você veio, irmãzinha."
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Atualizado até capítulo 39
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