2:Instinto de Fuga,

A chave girou na fechadura às 3h17 da madrugada. A casa abriu a boca para engolir os irmãos Ravaryn de volta. Asher foi o primeiro a entrar, chutando uma mochila adiante. Enzo veio logo atrás, os olhos vasculhando os cantos escuros como se esperasse encontrar fantasmas. Kael foi o último. Parou um segundo antes de cruzar a porta, como se o lugar fosse morder. Não mordia. Mas sufocava. Ele largou a mochila no chão da sala e tirou o moletom úmido de suor. A camiseta amarrotada por baixo colava nas costas. As meias estavam furadas. O cabelo bagunçado. Estava um trapo, mas não se importava. Tirou a camiseta ali mesmo e puxou uma outra qualquer da mochila, vestindo no escuro.
Ezra
Ezra
Você não vai agora
Kael evitou o olhar do irmão. Calçou os tênis, amarrando de qualquer jeito.
Ezra
Ezra
Espera pelo menos amanhecer.
Kael
Kael
Volto antes do sol subir,respondeu ele, já abrindo a porta.
Ezra
Ezra
Você sempre fala isso.
Mas Kael já estava na rua,a brisa fria batendo no rosto. Não queria conversar. Não ainda. A praia estava deserta,do jeito que ele lembrava. O céu começava a clarear de leve no horizonte, puxando tons de azul e cinza pelas nuvens. As ondas quebravam suaves, contínuas, como uma respiração antiga. Os pés dele afundavam na areia fria, a roupa ainda meio desalinhada, o zíper do casaco aberto. E então, como uma pintura feita de sal e brisa... lá estava ela. Naia Solano. Linda como sempre. Os cabelos cacheados caíam pelas costas, dançando com o vento. Ela estava de vestido claro, olhando o mar como quem fala com ele. A mesma postura de sempre firme, sem medo. Ela não mudou nada. E é claro que ela estaria aqui. Sempre foi a primeira a acordar nessa cidade. Nunca teve medo da solidão, nem do mar. Kael se aproximou devagar, com um meio sorriso puxando um dos cantos da boca.
Kael
Kael
Achei que sereias dormissem até mais tarde
Naia virou lentamente, os olhos ainda mais profundos àquela hora da madrugada. A luz fraca do céu nascente delineava o contorno do rosto dela. Ela não se surpreendeu.
Naia
Naia
O que você tá fazendo aqui?
Kael
Kael
Praia pública, não é? Ou você virou dona de Maralara?
Naia
Naia
Boa noite, Kael.
Kael
Kael
Ainda é madrugada
Ele respondeu, mas ela já estava virando as costas.)
Ficou parado ali, observando. Minha garota tinha crescido. O jeito de andar, o silêncio, a força. Ainda era Naia, mas com algo mais duro no olhar. Um mundo que não convidava mais qualquer um pra entrar.
Ele se sentou na areia, deixando o corpo relaxar como se o mar tivesse puxado toda a tensão. Ficou até o céu abrir de vez. O sol já tinha subido quando Kael apareceu no quiosque da orla, o da esquina norte - onde as pranchas de surfe costumavam ficar enfileiradas e o cheiro de tapioca era constante. Lá estavam elas. As irmãs Solano. Naia, sentada de lado no banco de madeira, mexia num caderno. Kaena, de riso fácil, conversava com um rapaz da vila. Ayla,distraída com os pés na areia e o olhar distante no mar. O povo de Maralara as chamava de sereias. Não só pela beleza mas pela presença. Elas pertenciam ao mar, como se tivessem saído dele. Ninguém duvidava. Kael ficou observando de longe, encostado numa pilastra de madeira. Não tinha coragem de se aproximar. Ainda não. A visão delas juntas era quase sagrada. As sereias ainda estão aqui. E eu... talvez nunca tenha deixado de ser um náufrago Kael empurrou a porta devagar, e o rangido familiar ecoou pela casa como um sussurro antigo. A luz do fim da tarde se infiltrava pelas frestas das janelas, dourando a poeira no ar. Ele deu o primeiro passo, sentindo o chão ranger sob os pés o mesmo som de quando corria ali quando criança, fugindo das broncas da mãe. O silêncio o envolveu como um cobertor pesado. Na sala, os móveis estavam cobertos com lençóis brancos, parecendo fantasmas dormindo em pé. E mesmo assim, tudo parecia intacto. Como se ela fosse aparecer a qualquer momento, com o avental amarrado na cintura, chamando por ele com a voz firme e doce. Seus olhos encontraram o pequeno porta-retrato na estante, empoeirado, mas ainda em pé. A mãe sorria na foto, com o cabelo preso e aquele olhar que enxergava mais do que dizia. Kael engoliu seco.
Ele entrou mais fundo, passando pela cozinha. Ali era ainda pior. As lembranças vinham em ondas: ela cantando baixinho enquanto mexia a panela, ralhando com ele por roubar pedaços do peixe antes da hora, limpando as mãos no avental antes de acariciar seu rosto. De repente, o som da porta se abrindo o despertou.
Kael
Kael
Eu disse que não voltaria. Voltaria..
murmurou para o vazio, mas as palavras sumiram no ar.
Ezra
Ezra
Ora, ora... não era você que ia voltar cedo?
provocou Enzo, encostado no batente da porta com aquele sorrisinho debochado
Kael
Kael
Foi mal, Enzo. Eu passei no quiosque
Respondeu Kael, largando as chaves sobre a mesa.
Kael
Kael
Sim. Inclusive... a Kaena tá linda.
Enzo arqueou uma sobrancelha, o olhar afiado.
Kael deu de ombros, como quem não se importa.
Ezra
Ezra
Não entendi por que você falou dela.
Asher
Asher
Pelo amor de Deus, Enzo. Todo mundo sabe do seu rolo com ela.
Ezra
Ezra
Eu não sei o que vocês escutou por aí, mas nunca tive nada com essa menina. Vai tomar banho, tira esse cheiro de mar!
Asher
Asher
As meninas ainda têm o quiosque?
Kael
Kael
Sim
Kael
Kael
Nunca entendi por que você nega que gosta dela.
Ezra
Ezra
Vai tomar banho, Kael! - Enzo rebateu, já virando as costas e saindo da sala antes que a conversa virasse outra coisa.
Asher
Asher
Aiai
Kael ficou ali por um instante, olhando para o corredor por onde o irmão sumiu. Nunca entendi direito o que rolou entre os dois. Mas rolou. Isso tá na cara. Enzo pode negar o quanto quiser até parece que os olhos dele não entregam tudo quando ela é mencionada.

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