A sala de aula do teatro cheirava a suor e ressentimento. A professora Erika, com seus óculos redondos e sorriso raro como um eclipse, martelava meu nome como se fosse uma ofensa pessoal.
— Ana. De novo.
Já tinha repetido a cena dez vezes. Dez. Minhas pernas tremiam, a garganta ardia. O roteiro escorregava entre meus dedos suados.
— O que mais você quer? — minha voz saiu mais áspera do que eu pretendia.
Ela ajustou os óculos, lentamente, como um juiz prestes a dar a sentença.
— Verdade. Quero que pareça real, não que você esteja recitando a lista do mercado.
Meus dentes cerraram. Real. Como se fosse fácil fingir emoção quando meu corpo estava se desfazendo por dentro, dia após dia, beijo após beijo. Cheguei em casa e encarei meu reflexo no espelho do banheiro. Olheiras fundas, lábios rachados. A personagem perfeita para uma tragédia grega.
— Natural. Visceral. — cuspi as palavras da Erika para o vidro.
E então, como uma louca, comecei a atuar. Gritei. Chorei. Ri até doer a barriga. Porque eu tinha descoberto algo: Minha dor era meu melhor material. Nos dois dias seguintes, virei minha personagem. No café da manhã, ensaiava monólogos com a colher no ar. No ônibus, sussurrava diálogos como orações. Até no banho, deixava a água fria bater nas costas enquanto encenava cenas de desespero. Marian me observava com um misto de admiração e preocupação.
— Você tá assustadora! — ela disse, enquanto eu repetia a mesma fala pela vigésima vez no vestiário.
— É o ponto.
— Tá parecendo que vai matar alguém.
Sorri, sem humor. Talvez eu vá. No dia da performance, o teatro estava cheio. Alunos, professores, até um crítico local que a Erika adorava puxar saco. Quando meu nome foi chamado, subi os degraus do palco devagar, como quem sobe no cadafalso. A luz do holofote queimou minha pele. Respirei fundo. E então deixei sair.
Toda a raiva da Erika. O desespero dos beijos roubados. A vergonha de ser uma aberração dependente de lábios alheios. Minhas lágrimas não foram fingidas. Quando a cena terminou, o silêncio foi tão denso que eu ouvi meu próprio sangue batendo nos ouvidos. Então veio a salva de palmas. Colegas de pé, assobios, Marian chorando no canto. Até o crítico parecia impressionado. Erika? Erika franziu a testa. Quando me aproximei dela, esperando por uma recompensa pelo meu trabalho árduo, ela apenas disse:
— Podia ter sido melhor.
O ar saiu dos meus pulmões como se eu tivesse levado um soco.
— Mais do que isso?! — quase gritei. — O que mais você quer? Quer que eu sangue no palco?
Ela não pestanejou.
— Se for preciso.
A adrenalina ainda latejava nas minhas veias quando a encarei nos corredores vazios.
— Você me pressiona demais!
Erika suspirou, como se eu fosse uma criança fazendo birra.
— Ana, teatro não é terapia. Se quer elogios fáceis, vá postar vídeos na internet.
— Não quero elogios! Quero respeito!
Ela estudou meu rosto por um segundo.
— Então mereça.
Naquela noite, deitada na cama, revivia cada palavra, cada olhar. Erika estava errada? Ou eu estava usando minha dor como muleta, esperando que o mundo se comovesse com meu sofrimento? Do lado de fora, a lua iluminava meu caderno aberto. Peguei uma caneta. Escrevi: "Personagem: A Garota que Sangrava Verdade." Sorri, amarga. A professora queria sangue? Ela ia ter.
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Atualizado até capítulo 31
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