Sabrina
Saio do bar com as pernas trôpegas e a cabeça leve demais para ser só cansaço. A tequila ainda pulsa nas veias como uma lembrança quente. O ar da noite bate no meu rosto, tentando me acordar. Pego o celular, quase como um gesto automático, e vejo a mensagem de Patrícia, minha ex-colega de quarto: "Você tem dois dias pra tirar suas coisas."
Paro na calçada. Leio de novo, como se as palavras pudessem mudar se eu insistisse. Mas não mudam. Sinto um aperto no peito, um vazio me engolindo aos poucos. Dois dias. Dois malditos dias. Respiro fundo, tentando não deixar o choro escapar ali mesmo, em meio ao movimento da cidade. Se eu não conseguir um quarto logo, vou ter que arrumar um trabalho integral — e jogar meu estágio pro alto. Ou pior: voltar pra casa dos meus pais.
Só de pensar, meu estômago revira. Voltar seria como regredir anos de luta. Lá, minha sexualidade é um fardo que eles não aceitam. Cada passo meu seria vigiado, cada suspiro censurado. Não... eu não consigo viver naquele tipo de prisão disfarçada de lar. Estou no último ano da faculdade. Tão perto. Eu preciso me manter aqui, mesmo que a cidade pareça me engolir aos poucos.
Chego em casa — ainda é estranho chamar assim esse lugar provisório — e começo a encaixotar o pouco que é meu. Cada objeto me faz pensar nas escolhas que me trouxeram até aqui. As roupas, os livros, os papéis da faculdade, os sutiãs de rendas baratas que comprei achando que fariam alguém ficar.
Quando estou quase finalizando a terceira caixa, o celular vibra. Uma notificação. Meus dedos tremem. É uma resposta do anúncio que postei hoje cedo, desesperada, oferecendo até meu rim pra dividir aluguel. Abro com pressa. É um "sim". Querem que eu vá conhecer o quarto amanhã cedo, antes do estágio.
Sorrio pela primeira vez no dia. Ainda com os olhos marejados, mas agora com algo que parecia esquecido dentro de mim: esperança.
Levanto antes mesmo do sol nascer. A verdade é que nem dormi. A ansiedade me corroeu durante toda a madrugada — minha cabeça girava entre medo, expectativa e necessidade. Me arrumo com pressa, como se o tempo fosse fugir de mim, e saio com o coração acelerado, torcendo para que o lugar seja pelo menos habitável.
Chego no endereço marcado e sou recebida por duas mulheres que aparentam ter mais ou menos a minha idade. Marília e Tâmara. Simpáticas, sorridentes, o tipo de pessoas que parecem deixar o ambiente mais leve só com a presença. Elas me conduzem pela casa com naturalidade, e explicam que o imóvel pertence à Tâmara, mas que dividem tudo entre elas com equilíbrio.
Quando abrem a porta do quarto disponível, encaro o espaço como quem vê um pedaço de salvação. É pequeno — muito —, mas tem uma janela grande que deixa a luz invadir sem pedir licença. O banheiro é minúsculo, mas só meu. Meu. Essa palavra ecoa na minha mente como algo precioso.
Olho para elas e não hesito. A resposta vem direto do meu peito, sem necessidade de cálculo ou comparação:
— Eu fico.
Não me importo com o tamanho. Não me importo com a vista ou a decoração. Tudo o que eu quero é um lugar seguro onde eu possa deitar e existir. Um canto que seja meu, ainda que apertado, ainda que emprestado. Um abrigo onde eu possa continuar estudando, trabalhando e — quem sabe — vivendo do meu jeito, sem precisar me encolher.
Elas sorriem com a mesma facilidade com que me acolheram. E eu, pela segunda vez em menos de 24 horas, respiro aliviada. Talvez, só talvez, a vida esteja abrindo uma fresta. E eu vou entrar por ela.
Faço a mudança no mesmo dia, logo depois das aulas. Carrego caixas e sacolas como se cada uma fosse uma conquista. Quando volto da última viagem, ainda suada e descabelada, ouço batidas leves na porta. É Tâmara, sorrindo como quem tem um segredo.
— Vamos sair agora pra comemorar sua chegada na casa — diz ela com um brilho animado nos olhos.
Olho pra ela, sorrindo de volta, sem disfarçar o cansaço que mistura com a empolgação.
— Onde?
Antes que ela responda, a voz de Marília ecoa do corredor:
— No Neon! É aqui pertinho!
Dou uma risada curta e já me viro para pegar uma roupa.
— Vou me arrumar rapidinho — digo, sem saber se estou mais animada com a ideia da saída ou de ter alguém me esperando lá fora.
Me troco no meu novo quarto ainda meio sem acreditar que agora ele é meu — mesmo que pequeno, mesmo que provisório. Quando volto, Tâmara está na sala me esperando. O jeito que ela me observa por um segundo a mais do que deveria não passa despercebido. Mas não digo nada.
Seguimos no carro dela até o bar. No caminho, conversamos sobre coisas leves — músicas, faculdade, manias. Aos poucos vou percebendo uma energia estranha entre Tâmara e Marília. Um flerte disfarçado, um silêncio que carrega mais do que palavras. Mas não é algo definido. Não são namoradas, não se tocam como amantes, mas os olhares dizem mais do que os lábios se permitem.
Ignoro. Aquilo não é da minha conta. Eu só quero estudar. Dormir em paz. Terminar o curso. Não me meter.
Chegamos ao Neon. O barulho do som alto vibra no meu peito. As luzes piscam em cores e promessas. A noite parece viva, pulsante, como se tudo pudesse acontecer.
Entramos juntas e vamos direto ao bar. Peço uma bebida com elas, tentando parecer mais segura do que me sinto. A bartender se vira para mim com um sorriso debochado no rosto. É a mesma da outra noite. Cabelos curtos, olhar de fogo. Vivian.
— Conseguiu um lugar? — ela pergunta, como se fosse uma continuação natural da nossa conversa anterior.
— Sim — respondo, sorrindo, e aponto para Tâmara. — Estou morando com ela.
Vivian me encara por um instante mais longo, como se quisesse decifrar alguma coisa em mim. Ou talvez em Tâmara. Ou talvez nós três.
Eu apenas pego o copo, encosto os lábios no vidro gelado e bebo. A tequila queima.
A noite só está começando.
...Ei, rapidinho!...
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Atualizado até capítulo 36
Comments
Maria Andrade
estou curtindo cada capítulo
2025-05-29
1