Lembranças

O frio é a primeira coisa que sinto.

Ele me rasga a pele como lâminas invisíveis enquanto sou jogada, sem delicadeza, dentro do calabouço. As portas de ferro se fecham atrás de mim com um estrondo que ecoa pelas paredes de pedra bruta, como um trovão anunciando o fim de tudo o que fui um dia.

Me encolho no canto, abraçando meus joelhos contra o peito. A escuridão aqui é quase total, apenas cortada por uma pequena janela gradeada no alto da parede, por onde mal passa um fio de luz pálida. O chão é úmido, sujo, com cheiro de mofo e podridão. É tão forte que tenho que respirar pela boca para não vomitar.

A umidade penetra minhas roupas o meu lindo vestido de casamento, agora sujo, manchado com sangue inocente e rasgado. As flores que adornavam meu cabelo se perderam no caminho. Sinto o tecido grudando na pele, o frio me consumindo, mas é a dor dentro de mim que mais machuca, uma dor tão profunda que parece ter raízes nas minhas próprias entranhas.

- Meu amor! Eu digo tocando a aliança no meu dedo.

A imagem dele cai sobre mim como uma lâmina afiada. Seu sorriso, seu olhar apaixonado enquanto deslizava o anel simples em meu dedo. Seu grito sufocado quando tentou me proteger. O som seco da espada cortando o ar, o horror estampado em seu rosto...

E depois, o silêncio da morte.

A cabeça de Thomas rolando pelo chão de terra batida e encostando em meus pés

O riso frio e aterrorisante de Raphael Valmont ressoando entre as paredes da capela.

Cubro o rosto com as mãos sujas, tentando afastar as lembranças, mas elas são implacáveis. Assim como ele.

Ele. Raphael Valmont.

Meu Rei. Meu carrasco. A fama de homem cruel, e seu longo histórico de assassinatos sempre foram histórias do povoado...mas agora eu sou uma de suas vitimas.

Fecho os olhos e, contra minha vontade, sou levada de volta ao dia em que nossos destinos se cruzaram pela primeira vez.

Fazia poucos meses. O sol queimava alto no céu quando os soldados surgiram no horizonte, seus estandartes negros tremulando como maus presságios. Não houve aviso. Não houve misericórdia.

Eles entraram no povoado marchando em formação, as botas pesadas esmagando a poeira da estrada, os cavalos bufando. As mulheres recolhiam as crianças para dentro de casa. Os homens saíam, hesitantes, tentando mostrar que não havia resistência.

Então ele apareceu.

Montado em um garanhão negro como a suacprópria alma, Raphael Valmont é a imagem da autoridade cruel. A armadura dourada refletia o sol, cegando-nos. A capa vermelha arrastava-se atrás dele como uma sombra viva. E o olhar... ah, aquele olhar! Frio como o aço, cortante como navalha.

Sem uma palavra, ordenou que seus homens invadissem as casas e prendessem os devedores de impostos. Meu amigo Luc, pobre Luc, tentara argumentar que só precisava de mais tempo. Eles o arrastaram pelas ruas como um criminoso.

A fúria ferveu dentro de mim. Antes que pudesse pensar, corri até a frente do pelotão, gritando por justiça. Eu sabia que era insensato. Mas a raiva nublou meu juízo.

Foi a primeira vez que vi Raphael de perto.

Ele me observou de cima do cavalo, com um sorriso pequeno e curioso, como se eu fosse um inseto estranho que ousava se rebelar. Seus olhos percorreram meu rosto, meus cabelos, meu corpo magro, e algo sombrio brilhou em sua expressão.

- Quem é você? Ele perguntou, a voz grave ecoando na praça silenciosa.

 - Alguém que quer justiça e igualdade. Por que nesse Reino os pobres pagam mais impostos que ricos. Respondi, erguendo o queixo, mesmo com as pernas tremendo.

Ele sorriu. Um sorriso sem alma, olhou para um soldado que imediatamente me empurrou, me tirando do caminho e eles partiram com os prisioneiros.

Poucos dias depois, e ninguém tinha sido liberto, decido então ir até o palácio tentar convencer o Rei a nos dar um prazo maior, e quem sabe conseguir a liberdade de Luc e os demais. Meus pais foram extremamente contra, mas essa pode ser a última chance.

Logo eu estarei diante dele no palácio. Lembro da sensação sufocante da riqueza desnecessária: os corredores intermináveis de mármore polido, os candelabros dourados, as tapeçarias luxuosas cobrindo paredes que poderiam alimentar vinte vilarejos só com o que custaram.Uma realidade muito distante da minha.d

Levaram-me até o salão do trono, onde o Rei Raphael aguardava sentado, tão majestoso quanto cruel.

Eu havia vindo em nome do povoado. Suplicar. Negociar. Pedir o parcelamento das dívidas, a libertação de Luc e dos outros.

Quando me ajoelhei diante dele em reverência, sentindo o frio do chão sob os joelhos, ouvi sua risada abafada.

- Levante-se. Ele ordenou, e seus olhos predadores me examinaram novamente.

- Quero ver seu rosto.

Fiquei de pé, o coração batendo tão forte que temi desmaiar.

Ele se levantou também, descendo os degraus do trono com passos lentos, calculados.

Quando parou diante de mim, estendeu a mão para tocar uma mecha solta dos meus cabelos.

Recuei como se tivesse sido queimada.

Por um segundo, vi surpresa em seus olhos. Depois, frustração. E algo mais que não sei dizer... algo perigoso.

- Interessante. Ele murmurou, como se falasse consigo mesmo.

- Nem parece aquela garota que ousou me enfrentar.

- Rei vim em nome do povo pedir para reduzir os impostos, o preço é excessivo e nós não...

- Ha Ha Ha!! Ele começa a gargalhar sua risada cheia de ódio.

- Ao menos nos possibilite parcelar esse valor, pagar de forma mais justa e liberte os...

- É isso que deseja? Ele pergunta me interrompendo.

- Sim. Por favor majestade. Pedi humildemente, suplicando por clemência para o povo.

- As colheitas foram escassas, e a fome já bate às nossas portas.

Ele fingiu ouvir. Fingiu se importar.

Mas, no final, recusou tudo.

- Não! Não vou mudar nada. Mas posso perdoar a sua dívida se você...me agradar. Ele diz com malicia e cheio de segundas intensões.

O nojo e a raiva borbulharam dentro de mim.

- Nem que o Rei fosse o último homem da terra. As minhas palavras saíram mais duras do que eu previa, e agora era tarde para consertar.

O chefe dos soldados que estava próximo, segurou na minha nuca e me fez ajoelhar.

- Como ousas?? Insolente!! O chefe grita.

O Rei toca no ombro dele e diz:

- Quero essa garota fora daqui!

E naquele dia, enquanto eu era escoltada para fora do palácio, sentia seus olhos cravados nas minhas costas como facas. Por um tempo achei que estava com sorte, mas agora descobri que não.

Deitada no chão imundo do calabouço, percebo a extensão do meu erro. Nunca deveria tê-lo enfrentado. Nunca deveria tê-lo provocado.

Para o Rei Raphael Valmont, o poder é um jogo. E eu, uma peça que se atreveu a desafiar o rei.

Trêmula, abraço minhas pernas com mais força. O frio se mistura às lágrimas que correm livres pelo meu rosto.

Me pergunto quanto tempo vou ficar aqui.

Me pergunto o que ele planeja fazer comigo.

Uma corrente de passos ecoa além da porta de ferro.

Meu coração dispara.

Será que é ele? Será que vai me arrastar para mais humilhações? Ou para a morte?

Talvez eu devesse desejar a morte. Talvez fosse mais misericordiosa do que viver sob o jugo de um Rei tão cruel.

Fecho os olhos e murmuro uma prece muda, a mesma que minha mãe me ensinou quando era menina.

Mas, no fundo, sei que ninguém vai me salvar.

Ninguém vem.

Não aqui.

Não neste reino onde o tirano é Rei.

Onde o amor foi arrancado do meu peito com a lâmina da brutalidade.

Onde tudo o que resta... é a luta para não deixar que ele quebre minha alma.

Ele pode tentar, mas não vou morrer sem lutar. Nunca sem lutar.

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Comments

Dulce Gama

Dulce Gama

meu Deus que homem perverso cruzes /Rose//Rose//Rose//Rose//Rose//Rose//Gift//Gift//Gift//Gift//Gift//Heart//Heart//Heart//Heart//Heart//Heart//Good//Good//Good//Good//Good//Good/

2025-05-16

0

Anonyamor

Anonyamor

Um tirano, cruel psicopata com a alma negra

2025-05-20

0

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