A câmara onde Enki ditava suas memórias a Endubsar era um bolsão de silêncio e luz suave, um contraponto à vastidão escura do passado que suas palavras evocavam. O escriba, após o choque inicial e o sustento divino, encontrou em si uma concentração febril, a ponta de seu estilo de metal prateado pairando sobre a argila luminosa, pronta para capturar cada sílaba, cada imagem que o deus da sabedoria projetava em sua mente.
“Nossa história em Ki, a Terra,” recomeçou a voz mental de Enki, após uma pausa que pareceu conter o peso de milênios, “é apenas um capítulo tardio, Endubsar, na longa e muitas vezes dolorosa crônica de Nibiru, nosso mundo natal. Para entender por que viemos, por que nos empenhamos em arrancar ouro das entranhas de seu planeta, é preciso primeiro olhar para o nosso próprio céu enfermo, para o suspiro frio de um gigante que adoecia.”
E as imagens fluíram, densas e melancólicas. Endubsar viu Nibiru não como o Planeta da Travessia em seu breve e glorioso periélio, mas em sua longa e árdua jornada pelo espaço profundo, o apogeu de sua órbita elíptica. Era um mundo que passava a maior parte de seu imenso ano – um shar de três mil e seiscentos ciclos terrestres – imerso numa penumbra gelada, onde o Sol de vosso sistema era apenas a mais brilhante entre miríades de estrelas distantes. A vida em Nibiru, para os longevos Anunnaki, era uma adaptação constante a esses extremos cósmicos.
Mas mesmo essa adaptação milenar encontrava seus limites. “Por incontáveis shars,” continuou Enki, “nossa atmosfera, um escudo dourado e complexo que nos protegia do frio do vácuo e filtrava as radiações hostis, vinha se tornando mais tênue. Um afinamento lento, quase imperceptível a cada geração, mas inexorável na escala dos éons. Como um velho cobertor que se esgarça, já não conseguia reter o calor do núcleo do planeta, nem o pouco que recebíamos do Sol em nossa breve passagem pelo seu reino.”
O resultado era um resfriamento global progressivo. Geleiras antes confinadas aos polos avançavam sobre as terras temperadas. As grandes cidades Anunnaki, construídas em vales profundos ou sob cúpulas de cristal que tentavam maximizar a luz e o calor, tornavam-se mais frias, mais sombrias. A agricultura nos biodomos exigia cada vez mais energia para manter as temperaturas ideais, e a produção diminuía. A própria vitalidade Anunnaki parecia afetada; os nascimentos eram mais raros, as doenças da velhice, mais frequentes. Nibiru suspirava, um longo e gelado suspiro de exaustão planetária.
No trono de Agade, a capital ancestral, o Rei Lahma personificava essa lenta decadência. Sua barba era branca como as geadas que agora cobriam as planícies do norte, seus movimentos, lentos e hesitantes como os de um planeta perdendo seu momento angular. Lahma era um rei de tempos passados, um guardião de tradições e protocolos que já não ofereciam respostas para a crise presente. Seus conselhos eram dominados por sacerdotes que interpretavam a crise como um desfavor dos Deuses Criadores Primordiais, ou por cientistas idosos cujas teorias eram tão antigas e cristalizadas quanto as formações rochosas de Nibiru.
“Lahma ouvia os relatórios sobre a perda atmosférica com uma tristeza passiva,” narrou Enki. “Ordenava mais rituais, mais estudos, mas pouca ação efetiva. Para ele, talvez, o destino de Nibiru estivesse selado, e restava apenas administrar o declínio com dignidade. Mas a dignidade não aquece um mundo que congela, Endubsar.”
O descontentamento crescia, especialmente entre os Anunnaki mais jovens e enérgicos, aqueles cujas vidas ainda se estendiam por muitos shars futuros. Viam a inação de Lahma não como sabedoria, mas como fraqueza, como uma sentença de morte lenta para sua civilização. E dessa frustração, ergueu-se Alalu.
Príncipe de uma linhagem real colateral, mas com o fogo da ambição e a força da convicção em seus olhos escuros, Alalu era um orador carismático, um líder nato. Ele não se conformava com o declínio. Percorria os salões do poder, as academias de ciência, os quartéis militares, sua voz ecoando com urgência e promessa.
"Até quando permitiremos que Nibiru se transforme num mausoléu de gelo?", ele questionava. "As soluções existem! Nossos arquivos antigos falam de tempos em que nossa atmosfera era densa e quente! Nossos cientistas mais ousados têm teorias, planos! Mas o trono está ocupado por um rei que teme a mudança mais do que teme o esquecimento! Eu digo que o tempo da hesitação acabou! Nibiru precisa de um líder que ouse agir, que ouse salvar nosso mundo!"
Suas palavras encontraram um eco profundo. Ele reuniu ao seu redor uma facção poderosa: generais que ansiavam por um comando forte, cientistas cujas ideias radicais eram ignoradas por Lahma, nobres que viam em Alalu a chance de restaurar a glória de suas próprias linhagens. A tensão entre o partido de Alalu e a corte estagnada de Lahma tornou-se uma fenda que ameaçava dividir o planeta.
A transição, quando veio, foi envolta na névoa da intriga palaciana e da política de poder Anunnaki. Não houve, segundo a memória velada de Enki, uma guerra civil aberta que devastasse o que restava de Nibiru. Mas houve um confronto de vontades, uma luta nos bastidores do poder. E numa noite em que os ventos solares sopravam com particular intensidade, interferindo nas comunicações e nos sensores, os guardas leais a Alalu cercaram o palácio real.
O destino exato de Lahma permaneceu um segredo bem guardado, um sussurro nos cantos escuros da história. Teria sido forçado a abdicar e enviado para um exílio discreto, para passar seus últimos ciclos contemplando o frio que não conseguiu deter? Ou seu fim teria sido mais... expedito, uma necessidade trágica aos olhos de Alalu para consolidar seu poder e evitar uma resistência prolongada? Alguns murmuravam sobre um "tio" da linhagem de Anu, um conselheiro fiel a Lahma, que desaparecera sem deixar vestígios durante aqueles dias turbulentos. A acusação, embora nunca provada, mancharia para sempre a ascensão de Alalu.
O fato é que, na manhã seguinte, era Alalu quem se sentava no trono de Nibiru, a coroa pesada sobre sua cabeça, os símbolos da realeza em suas mãos. Proclamou o início de uma nova era, uma era de ação e salvação. "O verdadeiro herdeiro do futuro de Nibiru sou eu!", declarou ele, não tanto para justificar a quebra da linhagem, mas para inflamar a esperança de seu povo.
Mas a coroa, ele logo descobriria, era mais um fardo do que um adorno. A crise atmosférica era real, profunda, e não se resolveria com discursos inflamados. Pressionado a entregar resultados, a provar que sua usurpação fora um mal necessário, Alalu mergulhou nos arquivos mais secretos de Nibiru, buscando soluções que Lahma temera ou ignorara.
Foi lá, em tabuletas de cristal que registravam conhecimentos de eras esquecidas, que ele encontrou a teoria sobre os vulcões adormecidos de Nibiru e o poder das "Armas de Terror". Eram artefatos de um passado bélico, dispositivos de energia concentrada capazes de feitos terríveis ou, quem sabe, milagrosos. A teoria era simples em sua audácia: usar essas armas para perfurar a crosta do planeta em pontos estratégicos, sobre as imensas caldeiras vulcânicas que dormiam há éons. As erupções resultantes, se controladas, poderiam liberar calor e gases do interior de Nibiru, adensando a atmosfera, criando um efeito estufa artificial, um escudo temporário contra o frio do espaço.
Era uma aposta desesperada, um plano que fazia os cientistas mais conservadores tremerem. As Armas de Terror eram proibidas, seladas por juramentos antigos feitos perante o próprio Anu em tempos de paz, após conflitos que quase destruíram a civilização Anunnaki. Despertá-las era um sacrilégio, um risco incalculável.
Mas Alalu, consumido pela urgência e pela necessidade de um feito grandioso que legitimasse seu reinado, não se deixou deter. "A necessidade quebra todas as leis!", teria dito ele a seus conselheiros hesitantes. "Se há uma chance, por menor que seja, de reaquecer nosso mundo, de dar um novo sopro de vida à nossa atmosfera, então devemos arriscar! Ordeno que se preparem as armas! Ordeno que se lancem nos vulcões do próprio Nibiru as suas velhas armas de terror!"
E assim foi feito. As armas foram retiradas de seus cofres blindados, sua energia antiga e perigosa pulsando na penumbra. Foram posicionadas sobre os vulcões escolhidos. E Alalu deu a ordem.
Endubsar viu, na mente de Enki, o céu escuro de Nibiru sendo rasgado por feixes de luz ofuscante. Ouviu o gemido profundo do planeta sendo ferido em seu âmago. E viu as montanhas cuspirem fogo. Colunas de fumaça e cinzas subiram até a alta atmosfera, bloqueando ainda mais a pouca luz solar. Rios de lava escorreram pelas encostas, engolindo paisagens antigas. O chão tremeu com terremotos que abalaram as cidades subterrâneas.
Por um breve ciclo, houve um aumento na temperatura superficial. Alguns gases foram de fato liberados. Alalu, em seu palácio, talvez tenha permitido um sorriso de triunfo. Mas o triunfo foi ilusório, e a realidade, brutal.
Os gases expelidos não eram os que poderiam criar um efeito estufa estável; eram, em sua maioria, sulfurosos, tóxicos, envenenando o pouco ar respirável que restava. A nuvem de cinzas e poeira tornou-se um véu ainda mais espesso, mergulhando Nibiru numa escuridão fria e prolongada. Os terremotos danificaram as estruturas das cidades, os sistemas de suporte de vida, as reservas de energia. O planeta, em vez de reviver, parecia ter recebido um golpe quase mortal.
O erro de Alalu fora catastrófico. Seu plano desesperado não apenas falhara, mas agravara a crise a um ponto crítico. O rei que prometera salvação agora era visto como o arauto da destruição final. Seu poder, construído sobre promessas e força, desmoronou sob o peso de sua própria e terrível imprudência.
Foi nesse vácuo de esperança, nesse cenário de um Nibiru ferido e de um rei desacreditado, que a sombra de Anu começou a se alongar sobre o trono de Agade. Anu, o descendente da linhagem primordial, cuja legitimidade era incontestável segundo as leis mais antigas dos Anunnaki. Ele, que talvez tivesse observado de longe, de um exílio autoimposto ou de um centro de poder alternativo, a ascensão e a queda de Alalu. Agora, com Nibiru à beira do colapso e o povo clamando por uma liderança que oferecesse não apostas insanas, mas sabedoria e estabilidade, Anu decidiu que seu tempo de silêncio terminara. O ciclo de Alalu se fechava. Um novo ciclo, e uma nova confrontação pelo destino de Nibiru, estava prestes a começar. O suspiro do planeta vermelho agora se misturava ao temor de uma guerra civil iminente.
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Atualizado até capítulo 61
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