O Murmúrio entre as grades
No seu segundo dia no Presídio Central, Helena começou a jornada de modo semelhante ao primeiro: cercada pelo som das correntes e o peso das portas que se fechavam atrás dela. Ainda não havia se adaptado completamente à rotina daquele ambiente. A tensão parecia se impregnar nas paredes de concreto e, por mais que tentasse focar em suas tarefas, ela sabia que nada seria simples ali. As distinções entre o certo e o errado, o legal e o ilegal, tornavam-se complicadas dentro daqueles muros.
Estênio entrou na sala da enfermaria com uma expressão de preocupação estampada no rosto.
— Doutora, temos um problema. — disse ele, sem rodeios.
Helena levantou os olhos, interrompendo sua análise dos registros dos detentos para compreender melhor a situação em cada setor.
— O que aconteceu? — ela perguntou, fechando a prancheta.
— É o preso, Miguel Avelar. Ele não compareceu para a triagem matinal da enfermaria. — Estênio soava desconfortável, mas estava habituado a lidar com situações inesperadas. — Já fizemos a chamada. Ele não está no pátio, nem na ala de isolamento.
Helena franziu a testa. Miguel dos Santos Avelar não era um preso comum. Seu histórico criminal era extenso, mas o que mais a intrigava não era o que ele havia feito, mas seu comportamento. Ele era diferente, algo nele contrariava as expectativas do seu histórico.
— Onde ele está agora? — Helena perguntou, levantando-se.
Estênio suspirou.
— Vamos dar uma olhada. Eu vou com você. Ele é... complicado. Não gosto de deixá-lo muito à vontade.
Helena acenou com a cabeça, seguindo-o pelos corredores do presídio. O ambiente estava ainda mais abafado naquele dia, e ela sentia os olhares dos presos em cada esquina. Alguns olhavam discretamente, outros de forma direta. Helena não era ingênua; sabia que, naquele espaço, todos estavam em constante vigilância, prontos para avaliar qualquer fraqueza ou movimento dos outros.
No pátio, a maioria dos detentos estava em fila para o almoço. O som das conversas baixas era intercalado por alguns risos abafados e murmúrios, mas nada parecia animado. Estênio fez um gesto para um dos guardas.
— Você viu o Avelar? — ele perguntou.
O guarda, um homem de pele clara com uma expressão de indiferença, negou com a cabeça.
— Não hoje. Ele deve estar dormindo. — respondeu o homem.
— Não acredito. — Estênio disse, balançando a cabeça. — Ele nunca perde uma chance de se exibir.
Helena estava prestes a perguntar algo quando ouviu um grito vindo da ala 2. Um som agudo, carregado de dor e raiva. Ela se virou rapidamente, mas o guarda a interrompeu.
— É só mais uma briga. Vai ficar tudo bem. É assim todo dia. — ele tentou tranquilizá-la, mas Helena sentiu um nó na garganta. Ela sabia que aquele tipo de violência era apenas a superfície de algo mais profundo.
Ela e Estênio continuaram o caminho até a ala de confinamento, onde Miguel havia sido levado após sua transferência. Ao chegarem à porta da cela, a atmosfera parecia mais densa, como se algo estivesse prestes a acontecer.
A porta foi aberta com um estrondo. Dentro, Miguel estava deitado em uma cama de cimento, com os olhos fixos no teto. O som da porta sendo aberta não fez com que ele se movesse. Estava imerso em seus próprios pensamentos.
— Avelar. — Estênio disse, com um tom mais firme. — Você sabe que não pode faltar ao atendimento médico, certo?
Miguel virou o rosto lentamente, seus olhos encontrando os de Helena. A expressão dele era difícil de ler, mas o olhar parecia carregado de algo. Curiosidade? Desdém? Talvez ambos.
— Acho que a dor não me procurou hoje. — Miguel respondeu, com um sorriso de canto. Sua voz era baixa, mas clara.
Helena deu um passo à frente, tentando não ser intimidada pela postura dele.
— A dor nunca avisa quando vai chegar. — ela respondeu, mantendo o olhar firme. — Você está bem, ou está escondendo algo?
Miguel se levantou com uma lentidão estudada, como se cada movimento fosse meticulosamente calculado. Ele passou a mão pelos cabelos, olhando para ela sem pressa.
— Nada de mais. — disse, enquanto caminhava até o canto da cela, onde estava um pequeno buraco onde entrava um pouco de ar e respondeu seco -- Hoje só queria um pouco de paz.
Helena permaneceu em silêncio por um momento, observando-o. Algo na maneira como ele falava, naquele espaço restrito e impessoal, chamou sua atenção. Ele estava calculando cada palavra, mas ela podia perceber que havia algo mais por trás disso. Algo que não dizia respeito apenas à prisão, mas a um conflito interno.
— Você não vai me contar o que está acontecendo, vai? — Helena perguntou, com um tom suave, mas direto.
Miguel sorriu, mas dessa vez o sorriso era mais enigmático.
— Você vai me ajudar, doutora? Vai curar a dor que vem de dentro? Ou vai fazer parte do sistema que só as fortacele aqui? — ele perguntou, como se testasse sua reação.
Helena não respondeu de imediato. Havia algo na pergunta dele que a fez pensar por um instante. Ela não estava ali para resolver todos os problemas do mundo, mas sabia que sua presença, mesmo que pequena, poderia trazer alguma mudança. Só não sabia ainda qual.
— Estou aqui para ajudar, Miguel. Mas você precisa entender que aqui, todos têm um limite. — ela disse, mantendo a calma.
Ele deu de ombros, sem parecer muito convencido.
— Aqui, todo mundo tem um limite, doutora. Mas o meu limite... bem, ele é diferente. — Miguel respondeu, virando-se para a janela novamente.
Helena observou-o por mais alguns segundos. Ela sabia que ele estava dizendo a verdade, de alguma forma. Ele não era como os outros presos. Havia algo de diferente nele, algo que desafiava as regras do presídio. E ela, por mais que tentasse se manter imparcial, já começava a sentir que seria impossível se afastar dele.
Ao sair da ala de confinamento, Helena foi abordada por Jair Lima, o detento com quem ela havia conversado na triagem.
— Doutora... — Jair começou, com um sorriso sarcástico. — Aquele cara aí... Miguel, não é? Ele vai dar trabalho. Vai por mim.
Helena olhou para ele, mas não respondeu imediatamente.
— Por que diz isso? — ela perguntou, tentando manter a neutralidade.
— Porque gente como ele não se encaixa aqui. — Jair disse, com um olhar enigmático. — E gente que não se encaixa... bem, acaba se tornando um problema para todos.
Helena sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Ela não sabia ao certo o que o futuro reservava, mas começava a entender que, dentro daquele presídio, as linhas entre certo e errado, culpado e inocente, eram mais borradas do que ela imaginava. E Miguel Avelar, de alguma forma, fazia parte dessa neblina que começava a engolir sua percepção da verdade.
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Atualizado até capítulo 47
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