pelo visto o bonitão é um túmulo

Eu fiquei ali.

Na portaria do prédio, com o pé ainda meio úmido, o orgulho esfarelado e a alma em reconstrução. Não era possível. Eu tinha pisado em cocô de cachorro na frente de um homem que parecia ter saído direto de uma propaganda de perfume masculino — daqueles que só passam em horário nobre.

E ele não só tinha me visto na pior… como também lavou meu pé.

Meu. Pé.

Com a água da garrafinha dele.

— Meu Deus… — murmurei, me abanando com a mão. O cheiro de cloro do jardim recém-regado não era suficiente pra me distrair.

Os gêmeos, pela primeira vez desde que aprenderam a falar, estavam quietos. Sentaram num banco e me encaravam com uma seriedade inusitada, como se sentissem que aquela humilhação me atingira num lugar profundo da alma.

— Tia, tá tudo bem? — Lívia arriscou, olhando de lado.

Assenti, ainda encarando o elevador como quem encara um dragão.

— Só… vamos esperar um pouquinho. Não quero subir agora. Vai que o bonit… digo, o pai da Bia tá no corredor.

— Melhor não subir mesmo — Lucas concordou, com a sabedoria ancestral de um menino de cinco anos. — Ele parece meio bravo. Bonito, mas bravo.

Ri baixo, sem vontade. Eles realmente tinham olhos de águia.

Quando finalmente decidi subir, o corredor já estava vazio. Chegamos em casa e fui recebida pelo cheiro de alho fritando. Minha avó, como sempre, fazendo mágica na cozinha mesmo num domingo preguiçoso.

— Vó… — comecei, largando as chaves na mesinha da entrada — por que a senhora nunca me falou que a gente tinha um vizinho gostosão?

Ela nem virou. Só soltou a colher de pau dentro da panela e gritou:

— Não acredito que você viu o gostosão!

— Vi, vó. Vi bem de perto. Ele lavou meu pé.

Ela virou-se devagar, olhos arregalados e a boca se abrindo num "O" perfeito.

— Lavou o quê?

— Meu pé.

— Minha nossa senhora das solteironas desesperadas… menina, se eu fosse mais novinha, eu já tinha passado o rodo nele faz tempo. Aquela barba mal feita… aquele peito largo… aquele andar de quem sabe o que tá fazendo com as mãos…

— Vó! — gritei, cobrindo os ouvidos. — Pelamor, respeito o meu colapso.

— E você que respeite minha sede! Faz dez anos que não aparece um homem decente nesse prédio. Esse aí apareceu e ficou calado. Ninguém nunca arrancou uma palavra dele. Nem o síndico!

— Pois é… ele falou comigo. E não foi pouco.

— Como é que aconteceu? Me conta! — Ela se encostou na bancada, olhos faiscando de fofoca.

Antes que eu respondesse, Lívia se antecipou:

— A tia pisou num cocô gigante e o moço lavou o pé dela.

A gargalhada da minha avó explodiu pela cozinha. Ela riu, riu tanto que teve que se apoiar na pia. Os gêmeos também começaram a rir de novo, só pela risada dela.

— Essa família não tem um pingo de normalidade — ela disse entre uma gargalhada e outra. — Você e sua irmã têm talento pra passar vergonha perto de homem bonito. Primeiro a Joyce encontra o Leonardo de quatro no elevador, toda suja de lama, salto quebrado, no dia da entrevista dela. E agora você, com cocô no pé!

— Eu lembro dessa história! — gargalhei também. — Ela deu umas cinco bengaladas nele antes de saber que era o dono da empresa.

— E foi logo seduzindo o patrão, essa safada — a vó murmurou, pegando o pano de prato e enxugando as lágrimas do riso.

— A senhora não falou isso na época.

— Claro que não! Eu queria que ela conseguisse o emprego, né? Mas agora já tá tudo dominado mesmo…

— Tá vendo? Essa família é doida. E é sua geração, vó.

— Olha a boca, menina, que eu dou em você também!

— Tá bom, tá bom — ri, jogando as mãos pro alto em rendição.

— Agora me conta — ela retomou, servindo pipoca pros meninos que já estavam sentadinhos no chão assistindo desenho, em silêncio absoluto — ele lavou o seu pé. Depois o quê?

— Depois falou que eu parecia pior que as crianças. Perguntou se eu era formada. Disse que ia ficar de olho em mim. E foi embora.

— Menina… ele FALOU contigo?! Assim?! Desse jeito? Olhando no olho?

— Olhando no olho e com um perfume que… se engarrafasse, eu tomava no café da manhã.

— É um milagre, Júlia. Um milagre! Aquele homem não fala com ninguém. Nunca! Já tentei puxar papo mil vezes. Nem bom dia. Nada. Todo mundo aqui sabe que ele é pai solteiro, mas ninguém sabe a história toda. Vive calado, recluso, mas sempre com a menininha dele. Nunca vi outra mulher na porta dele. Nunca ouvi barulho.

— Como a senhora sabe de tudo isso?

Ela me encarou com um sorrisinho torto, aquele de quem carrega muitos segredos e muito tempo livre.

— Segredos de vó. Eu sei de tudo que acontece nesse prédio, minha filha. Antes de você nascer eu já sabia quem traía quem no terceiro andar. E esse homem aí… esse aí é um mistério dos bons.

— Mas ninguém sabe por que ele é tão fechado?

— Ninguém sabe — ela respondeu, tirando a panela do fogo. — E se alguém sabe, não conta.

— Hm…

Fiquei em silêncio, mordendo uma pipoca que roubei dos meninos, o pensamento longe. Ainda sentia a pressão daquele olhar dele em mim. Como se ele enxergasse mais do que eu queria mostrar.

O mistério só estava começando. E eu… já tava no meio dele.

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