Se eu disser que acordei no meu primeiro dia de trabalho com disposição, eu estaria mentindo descaradamente. O despertador gritou às seis da manhã e minha alma respondeu com um sonoro "vai se foder". Mas levantei, claro, porque a adulta funcional em mim ainda existe — meio sonâmbula, mas existe.
Desci pra cozinha com o cabelo parecendo um ninho de corvo e dei de cara com minha avó fritando pão na chapa e dando bronca nos gêmeos por estarem correndo de cueca pela sala.
— Se vocês caírem e quebrarem os dentes, não sou eu que levo no hospital! — ela berrou, enquanto Lucas fazia a pose de super-herói em cima do sofá.
— Bom dia, hospício! — eu anunciei, pegando uma caneca de café como se fosse remédio controlado.
Leonardo apareceu com a camisa social meio aberta, ajeitando a gravata, e me entregou as chaves do carro.
— Te deixo na escola hoje, aproveito que é caminho da empresa.
Joyce, com a cara amassada ainda e a franja num estado deprimente, gritou da lavanderia:
— Lembra de falar com a Socorro, a diretora. Ela é gente boa, mas tem cara de quem já bateu em muito adulto folgado.
A escola Arco-Íris era enorme. Tipo, enorme mesmo. Aquilo não era só escola, era um pequeno condomínio de luxo com cheiro de canetinha nova e criança rica.
A fachada era toda colorida — literalmente um arco-íris — e eu já imaginei o tanto de birra e drama que devia ecoar por aqueles corredores. Ao descer do carro, Leonardo sorriu e piscou:
— Boa sorte, SuperNanny.
— SuperNanny o caralho — respondi. — Vou é enfiar giz na orelha da primeira peste que cuspir bala no chão.
Na recepção, fui recebida pela diretora Socorro. Uma mulher de uns cinquenta e poucos anos, cabelo ruivo tingido, coque impecável e um vestido azul-marinho que dizia “sou elegante, mas meto esporro”.
— Você é a irmã da Joyce, né? Já ouvi falar bastante. Entra, vamos te mostrar tudo.
Conheci a sala dos professores — com um cheiro delicioso de café e biscoito amanteigado. O banheiro dos professores parecia mais limpo do que quarto de hospital, e a sala de aula... Bom, era uma graça. Mesas coloridas, livros organizados, um mural cheio de desenhos e cartinhas grudadas com glitter.
Quando bati o olho na lista, lá estavam: Lucas Almeida, Lívia Almeida e Beatriz Tavares.
Na hora da entrada, uma enxurrada de crianças invadiu a sala. Os gêmeos correram até mim como se eu fosse um parque de diversões ambulante.
— Tia Júlia!!! — gritaram os dois em uníssono, me agarrando pelas pernas.
— Ô meus pestinhas preferidos... vamos fingir que não somos parentes aqui dentro pra não pegar mal, beleza?
Lívia assentiu muito séria. Lucas me olhou desconfiado:
— Então posso te chamar de “tia chata” igual eu chamo a professora de música?
— Pode, mas só se eu puder te chamar de “mini capeta”. Fechado?
Eles riram. E foi aí que notei a menina do outro lado da sala, sentadinha, com dois coques no cabelo, tiara de borboleta e um sorrisinho tímido.
— Oi, professora. Eu sou a Beatriz. Mas todo mundo me chama de Bia.
— Oi, Bia! Muito prazer.
— Eu fiz uma cartinha pra você. Mas só pode abrir no final da aula.
O coração deu uma aquecida. Aquela criança parecia saída direto de um comercial de margarina. E eu, que sou uma rocha emocional, já tava quase chorando por causa de um papel com glitter.
A aula passou voando entre pinturas, contação de histórias, briga por lápis de cor e Lucas tentando enfiar um lápis no nariz “pra ver até onde vai”.
Quando bateu o sinal do fim do turno, Bia veio até mim com a cartinha nas mãos.
Um papel rosa, escrito com canetinha azul:
“Querida professora, bem-vinda à nossa sala. Espero que você goste da gente. Eu já gostei de você. Beijos da Bia.”
Sim, eu chorei. Mas escondido, no banheiro dos professores, sentada na privada, abraçada ao papelzinho.
E naquele momento, eu soube que, mesmo sendo o hospício que é, eu tinha voltado pra casa.
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Atualizado até capítulo 38
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