O Sargento Borges subia as ladeiras do Morro da Coruja que nem uma alma penada fugindo da primeira luz do dia. Bêbado, tropeçando nas pedras soltas e no lixo acumulado, suando frio apesar do vento da noite. O coração parecia uma bateria de escola de samba na Quarta-Feira de Cinzas, batendo desgovernado dentro do peito apertado. O revólver calibre .38 na mão direita tremia, pesado. Cada sombra de bananeira retorcida na luz fraca dos postes parecia um vulto pronto pra dar o bote; cada rajada de vento que assobiava pelos becos parecia sussurrar aquela palavra maldita no ouvido dele: '...devolva...'. A cachaça que ele bebeu dava uma coragem torta, uma raiva cega, mas o medo, mermão... ah, o medo era real pra caraca, um bicho gelado grudado na espinha dele, dizendo que ele tava fazendo uma merda muito grande.
Finalmente, depois do que pareceu uma eternidade, ele chegou no platôzinho quase no topo do morro, onde ficava o barraco da Vó Anahi. Parou ali, ofegante, a respiração rasgando o peito, olhando pra construção simples, quase humilde demais pra guardar tanto poder ou tanto pavor. Parecia tudo quieto, silencioso até demais. Mas o ar ali era diferente. Tinha um peso. Uma densidade. Carregado com uma energia antiga que fazia os pelos dos braços dele se arrepiarem na hora, mesmo com o álcool ainda esquentando o sangue. A porta do barraco estava fechada. Uma luz amarelada e fraca de lamparina vazava pelas frestas da madeira gasta.
E na frente da porta, parada como uma estátua de pedra esculpida pelo tempo, estava ela. Vó Anahi. Esperando por ele.
A véia olhava pra ele sem demonstrar um pingo de medo. Os olhos escuros e fundos pareciam varar a figura suada e trêmula do miliciano, enxergando toda a podridão lá dentro.
"Foi tu, né?! Sua bruxa desgraçada!" gritou Borges, a voz embargada pela cachaça e pelo pavor que ele tentava esconder com raiva. Levantou a arma na direção dela, a mão tremendo tanto que a mira dançava. "Foi tu que deu sumiço no Caju! Foi tu que tá fazendo essa macumba toda pra cima de mim! Para com essa porra agora, ou eu te meto uma bala nessa tua cara de múmia!"
Anahi nem se mexeu. Nem um músculo do rosto se alterou. Quando falou, a voz saiu calma, baixa, mas com um peso de séculos, um poder que parecia vir do próprio chão que pisavam:
"Ninguém aqui fez macumba pra tu, homem branco," ela disse, e o jeito que ela falou 'homem branco' fez parecer que ele era o forasteiro ali, o invasor. "A terra... ela só tá cobrando o que é dela por direito. Vocês chegaram aqui, no meu lar, no lar dos meus ancestrais. Sujaram meu chão com sangue inocente, com a ganância de vocês. Feriram meus filhos – os bichos, as plantas, as crianças daqui. Sugaram a vida do meu povo sofrido com seu 'arrego', sua extorsão nojenta. Vocês têm uma dívida antiga com essa terra, uma dívida de sangue e respeito. E a terra, meu filho... a terra sempre cobra."
"Dívida o caralho, sua índia velha do cacete!" berrou Borges, cego de raiva e medo, engatilhando o revólver com um clique metálico que ecoou no silêncio tenso. O dedo nervoso foi pro gatilho.
Mas antes que ele pudesse apertar, antes que a bala profanasse ainda mais aquele lugar, o chão debaixo dos pés dele tremeu. Não um tremor de terra normal, desses que abalam a cidade às vezes. Não. O chão batido ali na frente do barraco, a poucos passos da Vó, pareceu amolecer de repente. Virou um lodo escuro, pegajoso, um tipo de areia movediça com um cheiro forte de pântano, de coisa podre.
Borges arregalou os olhos, o grito preso na garganta, sentindo as botas afundando rápido naquela lama inesperada. "Mas que porra é essa?!" conseguiu gritar, tentando puxar os pés pra trás, se livrar daquilo. Tarde demais. Já estava afundado até os joelhos, e a lama puxava com força.
E do chão lamacento, mermão, como num pesadelo, começaram a brotar raízes. Raízes grossas, escuras como cobras, que se moveram com vida própria. Elas se enrolaram nas pernas dele, nos joelhos, nas coxas, apertando com a força de mil homens, puxando ele pra baixo, pra dentro da terra que ele tanto desrespeitou.
O miliciano gritou. Dessa vez o grito saiu, um urro de puro terror, de dor e de pânico, que logo foi abafado pela lama escura que subia rápido. Ele largou a arma, que afundou na lama e desapareceu como se nunca tivesse existido. Se debateu com a força do desespero, tentou se agarrar em qualquer coisa, no ar, nas próprias raízes que o prendiam. Mas elas eram muitas, fortes demais, implacáveis. A terra o engolia sem pressa, mas sem nenhuma pausa. Os olhos esbugalhados de pavor estavam fixos na figura imóvel da Vó Anahi, que só observava, o rosto indecifrável como uma máscara antiga. A lama e as raízes cobriram a cintura, o peito... o último som que se ouviu foi um gorgolejo horrível quando a lama invadiu a boca aberta num grito mudo.
Em menos de um minuto, não tinha mais nada ali onde o Sargento Borges estava. Só o chão remexido, borbulhando um pouco, que aos poucos foi se aquietando, voltando ao normal, como se absolutamente nada tivesse acontecido. Nenhum sinal do miliciano. A terra tinha cobrado sua dívida.
Escondida atrás de uma moita de bananeira ali perto, encolhida, tremendo da cabeça aos pés, estava Bia. A curiosidade e um mau pressentimento tinham feito ela seguir o sargento de longe quando o viu subir o morro transtornado daquele jeito. E ela viu tudo. A acusação, a calma sobrenatural da Vó Anahi, o chão se abrindo e engolindo o homem armado como se ele fosse nada... O coração dela batia tão forte que parecia que ia sair pela boca. Vó Anahi... a véia do chá de boldo... era... era aquilo? Um poder antigo, assustador, que vinha da própria terra, capaz de fazer gente desaparecer?
Vó Anahi deu as costas pro local onde o Sargento Borges tinha sido reclamado pela terra e entrou calmamente no seu barraco. Com a mesma serenidade de antes, como se tivesse acabado de varrer a soleira da porta, pegou a boneca de palha que representava o miliciano, aquela com a mão marcada pela lama preta, e a enterrou com cuidado junto da outra, no pote de barro com a terra escura.
"Mais um voltou pra terra," ela murmurou, mais pra si mesma do que pra qualquer outra pessoa. O cheiro forte de mato podre que tinha enchido o ar durante a 'cobrança' foi se dissipando devagar, dando lugar de novo ao cheiro familiar de terra molhada e da fumaça fina que saía do fogão a lenha improvisado nos fundos do barraco.
Ela foi até a fresta da janela e olhou pra Babilônia de luzes lá embaixo, pro monstro de concreto e asfalto que cercava seu morro. Olhou pras luzes do próprio morro, que ainda pulsava com vida, mas também com medo e violência. A limpeza tinha começado bem, dois galhos podres e barulhentos tinham sido cortados pela raiz. Mas a raiz do problema... ah, essa era mais funda, mais escondida, mais poderosa. O serviço estava longe, muito longe de acabar.
Lá fora, na escuridão úmida da noite, Bia continuava escondida atrás da bananeira, paralisada de medo e de espanto. Ela sabia, com uma certeza gelada, que tinha visto algo que não devia ter visto. Algo que mudaria pra sempre o jeito como ela via o morro, a vida, a morte... e a véia quieta e misteriosa que morava lá no alto, a guardiã da terra.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 42
Comments