4.O Medo Cheira a Mato Podre

Depois do sumiço misterioso do Caju e daquele fuzil bizarro deixado pra trás, mermão, o Morro da Coruja virou um formigueiro pisado. O medo e a fofoca corriam solto pelos becos e vielas mais rápido que notícia ruim. Ninguém sabia explicar direito o que tava rolando, mas geral sentia no ar: a parada tava sinistra, véio!

Mas pra ninguém ali o bagulho tava mais doido do que pro Sargento Borges. O miliciano, que antes andava pelo morro com a marra de dono, peito estufado e cara de poucos amigos, agora parecia um bicho acuado, olhando pra todos os lados. O cara mal dormia, comia quase nada, mas bebia pra caraca. Cachaça e cerveja barata. Qualquer barulho na noite – um gato no telhado, um fogo de artifício estourando longe – era motivo pra ele pular da cama com o trabuco na mão, suando frio. Começou a ver coisa onde não tinha, mermão. Sombra dançando no canto do olho, vulto passando rápido nos becos escuros. E aquele chiado medonho que ouviu no beco voltava nos ouvidos dele do nada, fazendo ele se arrepiar inteiro.

Pra piorar a neurose do Borges, os 'cara' do Caju lá da boca do outro lado, revoltados com o sumiço do parceiro, começaram a botar a culpa na milícia. "Foi aqueles verme que deram fim no Caju! Certeza! Usaram macumba braba, essas porra que eles mexem!", gritou o 'frente' do tráfico num papo reto com os comparsas, espalhando a ideia. A tensão entre as duas facções, que já vivia no limite, ficou pior que briga de vizinho por causa de som alto. Teve até um dia que os 'vapor' do tráfico e os 'homem' da milícia se trombaram feio numa viela estreita, trocaram ameaça, mostraram os bico... quase saiu troca de tiro ali mesmo, no meio dos morador. Mó climão tenso. Foi preciso o 'patrão' do morro (que tava mais preocupado com o lucro do que com o Caju) e o chefão da milícia (um cana corrupto lá do asfalto) darem um toque por telefone pra acalmar os ânimos exaltados, senão ia rolar um banho de sangue desnecessário – pra eles, claro.

O Borges sentia o cerco fechando em volta dele. Não era só o medo do sobrenatural, agora tinha a desconfiança dos rivais e até dos próprios parças. Desesperado, o cara fez o que muito 'machão' valentão faz quando a água bate na bunda e o medo aperta: apelou pro outro lado. Foi escondido, de boné e óculos escuros pra não ser reconhecido, num terreiro de Umbanda famoso lá pras bandas da Baixada Fluminense. Chegou lá tremendo, pediu 'proteção', 'fechamento de corpo', qualquer parada que afastasse o 'mau olhado' ou a 'coisa ruim' que tava atrás dele. Gastou uma grana preta que tinha extorquido do povo num 'trabalho' caprichado que o pai de santo prometeu. Voltou pro morro se sentindo um pouco mais seguro, com uns patuás e guias coloridas penduradas no pescoço por baixo da blusa larga.

Mas que nada, mermão. Ilusão pura. Naquela mesma noite, ele acordou no meio da madrugada com o quarto cheirando forte a mato podre, um cheiro de brejo que vinha de lugar nenhum. E com a sensação nítida de ter uma mão gelada, ossuda, apertando o tornozelo dele por cima do lençol. Deu um pulo da cama, acendeu a luz, o coração na boca. Nada. Só o cheiro impregnado no ar. Quase teve um treco ali mesmo. Os outros milicianos que trabalhavam com ele já tavam olhando pra ele de lado, cochichando pelos cantos que o sargento tava 'pirando o cabeção', 'ficando maluco de vez', 'vendo assombração'. Ele tava ficando sozinho, ilhado na própria paranoia.

Enquanto o circo pegava fogo lá embaixo, com bandido e miliciano se estranhando e o Borges perdendo o juízo, lá no alto do morro, no barraco da Vó Anahi, a calma era quase assustadora. O canto baixo dela continuava, dia e noite, parecendo ainda mais forte, mais concentrado. E quem passasse ali perto, se reparasse bem – e se tivesse coragem de olhar –, via que as poucas plantas teimosas que ainda nasciam nas frestas de terra e pedra em volta do barraco dela pareciam mais verdes, mais viçosas, crescendo numa velocidade absurda. Uns vizinhos mais medrosos até juravam ter visto uma luzinha azulada, meio fantasmagórica, piscando lá dentro tarde da noite.

Foi a Bia, uma garota esperta de uns quinze anos, neta da Dona Lurdes, uma vizinha da Vó, que às vezes levava um pão, uma fruta pra véia em troca de um chá pra cólica, que reparou mais nas mudanças. Ela tinha ido levar umas goiabas. "Vó Anahi, com licença... a senhora tá... diferente", ela falou, meio sem jeito, entregando as frutas. "Seus olhos... parece que tão brilhando mais, sei lá."

A véia, que estava sentada no chão trançando um cesto pequeno, levantou o rosto e sorriu pra Bia. Um sorriso que não chegou aos olhos, que continuavam fundos e intensos. "É a força da terra, minha filha," respondeu a Vó, a voz rouca e suave. "Ela tá só acordando depois de muito tempo."

Bia não entendeu direito aquelas palavras, mas sentiu um arrepio na espinha. Lembrou das histórias que corriam sobre o sumiço do Caju, tinha visto de longe a cara de pânico do Sargento Borges outro dia na rua. Começou a pensar... Será que aquela véia tão quieta...? Não, não podia ser. Ou podia?

A paranoia do Sargento Borges, alimentada pela cachaça, pelo medo e pela falta de sono, chegou no limite naquela noite mesmo. Bêbado, virado há quase duas noites, ele tava num boteco imundo com mais dois milicianos, tentando afogar o pavor. Foi quando ouviu um dos seus homens comentar baixo com o outro, sem saber que Borges estava ouvindo:

"Cara... e aquela véia lá de cima, a tal da Anahi? Dizem que ela mexe com essas paradas de erva, de reza antiga... pessoal fala que ela é tipo... índia antiga, sei lá. Vai que essa macumba toda..."

O comentário era vago, mais uma fofoca de morro. Mas foi a faísca que faltava na mente perturbada e encharcada de álcool do sargento. Ele bateu com o copo na mesa, os olhos vermelhos injetados. Ligou os pontos do jeito mais torto e desesperado possível.

"É ela!" ele rosnou, a voz embargada pela cachaça e pelo ódio. "É ela! A bruxa velha! Aquela índia desgraçada! É ela que tá fazendo essa macumba pra cima de mim, pra cima dos meus! Ela que sumiu com o Caju!"

Ignorou os olhares assustados dos seus homens. Levantou-se da mesa, cambaleando um pouco. Pegou o revólver calibre .38 da cintura, checou a munição com as mãos trêmulas. Foda-se o terreiro da Baixada, foda-se os patuás no pescoço. Ele ia resolver aquilo do jeito que conhecia. Ia na fonte. Ia calar a boca daquela puta velha de uma vez por todas.

Saiu do boteco e começou a subir o morro quase correndo, tropeçando nos próprios pés, resmungando maldições. O ódio e o medo brigando feito dois demônios dentro dele. Ele nem percebeu, mas estava indo direto pra toca da onça, mermão. Cego de raiva e pavor.

E a onça, a Vó Anahi, lá no alto, sentiu ele chegando. A energia de ódio dele era como um fedor subindo o morro. Ela parou de cantar. Pegou a boneca de palha que vibrava com a energia do sargento. E esperou. A hora dele acertar as contas com a terra estava chegando.

Capítulos
1 1. A Paciência das Pedras
2 2.O Sopro no Beco
3 3.O Cipó no Fuzil
4 4.O Medo Cheira a Mato Podre
5 5.A Dívida da Terra
6 6.A Calma Antes (ou Depois) da Tempestade
7 7.A Testemunha e a Bruxa
8 8. Os Fios da Teia e a Árvore Antiga
9 9. O Segredo da Figueira e a Sombra no Mato
10 10.Olhos no Morro, Flecha no Asfalto
11 11.O Gosto de Terra no Cristal e a Ordem do Patrão
12 12. A Resposta da Terra
13 13. O Eco do Medo e a Calmaria Armada
14 14. Os Ratos Saem da Toca e a Teia se Mexe
15 15. Recado pra Rato Não Roer Raiz Antiga
16 16. Sementes da Dúvida e a Fúria do Asfalto
17 17. A Tempestade Anunciada e o Chamado da Árvore-Mãe
18 18. O Canto da Terra contra a Tempestade de Aço
19 19. A Neblina da Discórdia e o Medo na Tropa
20 20. O Recuo da Máquina e a Calmaria Sob Suspeita
21 21. A Guerra nos Fios Invisíveis
22 22. Magia Contratada e Caneta de General
23 23. Duelo de Sombras e Papel Timbrado
24 24. Justiça Cega e Duelo Mágico
25 25. A Calma Podre e a Busca pela Raiz
26 26. Raiz Ameaçada, Terra em Alerta
27 27. Sussurros na Mata, Passos no Escuro
28 28. O Recuo dos Ratos e a Teia da Burocracia
29 29. Fome, Sede e Sussurros de Revolta
30 30. Papelada e Veneno
31 31. Olhos e Ouvidos do Sistema
32 32. Fogo Amigo e Muro Rachado
33 33. A Teia de Bia e a Magia da União
34 34. O Recado do Coronel
35 35. A Resposta Silenciosa
36 36. O Ataque à Raiz e o Grito da Terra
37 37. Raiz Protegida, Fúria Adormecida
38 38. A Notícia da Queda e a Maré Virando
39 39. O Blefe do Coronel
40 40. Xeque-Mate da Comunidade
41 41. Ecos da Guerra, Sementes de Paz
42 42. O Ciclo Continua
Capítulos

Atualizado até capítulo 42

1
1. A Paciência das Pedras
2
2.O Sopro no Beco
3
3.O Cipó no Fuzil
4
4.O Medo Cheira a Mato Podre
5
5.A Dívida da Terra
6
6.A Calma Antes (ou Depois) da Tempestade
7
7.A Testemunha e a Bruxa
8
8. Os Fios da Teia e a Árvore Antiga
9
9. O Segredo da Figueira e a Sombra no Mato
10
10.Olhos no Morro, Flecha no Asfalto
11
11.O Gosto de Terra no Cristal e a Ordem do Patrão
12
12. A Resposta da Terra
13
13. O Eco do Medo e a Calmaria Armada
14
14. Os Ratos Saem da Toca e a Teia se Mexe
15
15. Recado pra Rato Não Roer Raiz Antiga
16
16. Sementes da Dúvida e a Fúria do Asfalto
17
17. A Tempestade Anunciada e o Chamado da Árvore-Mãe
18
18. O Canto da Terra contra a Tempestade de Aço
19
19. A Neblina da Discórdia e o Medo na Tropa
20
20. O Recuo da Máquina e a Calmaria Sob Suspeita
21
21. A Guerra nos Fios Invisíveis
22
22. Magia Contratada e Caneta de General
23
23. Duelo de Sombras e Papel Timbrado
24
24. Justiça Cega e Duelo Mágico
25
25. A Calma Podre e a Busca pela Raiz
26
26. Raiz Ameaçada, Terra em Alerta
27
27. Sussurros na Mata, Passos no Escuro
28
28. O Recuo dos Ratos e a Teia da Burocracia
29
29. Fome, Sede e Sussurros de Revolta
30
30. Papelada e Veneno
31
31. Olhos e Ouvidos do Sistema
32
32. Fogo Amigo e Muro Rachado
33
33. A Teia de Bia e a Magia da União
34
34. O Recado do Coronel
35
35. A Resposta Silenciosa
36
36. O Ataque à Raiz e o Grito da Terra
37
37. Raiz Protegida, Fúria Adormecida
38
38. A Notícia da Queda e a Maré Virando
39
39. O Blefe do Coronel
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40. Xeque-Mate da Comunidade
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41. Ecos da Guerra, Sementes de Paz
42
42. O Ciclo Continua

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