O cheiro de cebola caramelizada e especiarias flutuava pela casa como um feitiço acolhedor. Panelas tilintavam, colheres dançavam sozinhas e uma garrafa de óleo deslizava pelo ar como se tivesse asas.
Na cozinha do restaurante da família, magia era parte do tempero. Literalmente.
Lira — Neko! Os pedidos da praça! — gritou a tia Lira, sua voz abafada pelas chamas azuis que queimavam sob o caldeirão.
Ele pegou a bandeja com agilidade e saiu sem dizer nada, atravessando o salão repleto de clientes encantados — alguns literalmente. Um homem com barba feita de fumaça soprou bolhas de fogo por acidente, fazendo um casal de elfos rir. Uma mulher de asas douradas agradeceu com um aceno elegante, seus olhos brilhando como cristais.
E Neko... apenas sorriu de canto.
Entregou os pratos. Limpou as mesas. Engoliu a sensação de estar fora de lugar.
A casa ficava no andar de cima do restaurante. Pequena, acolhedora, mas cheia de barulho.
Seus três irmãos estavam em casa. E isso sempre fazia parecer que o mundo inteiro estava ali, menos ele.
Jorin — Viu o que eu fiz hoje na aula? — dizia Jorin, o mais velho, com orgulho. — Teleporte de sombra em tempo real. Três metros em menos de meio segundo.
Lysa — Impressionante, irmão — respondeu Lysa, girando no ar com fios de água flutuando ao seu redor como serpentes líquidas. — Mas acho que você ainda não viu isso...
Ela estalou os dedos e fez a água se transformar em pássaros de cristal. Os pássaros bateram asas, soltando um brilho arco-íris e sumindo em fagulhas. Nayel, o caçula, riu encantado.
Nayel — Um dia eu vou invocar meu próprio guardião etéreo! Vou virar Break antes dos dezoito!
Neko escutava tudo da cozinha. Lavava pratos. Não por obrigação, mas por costume.
Era o único momento em que as vozes se tornavam ruído de fundo.
Ele amava seus irmãos. Sempre amou.
Mas era impossível não sentir o peso da comparação.
Todos eles despertaram seus dons ainda crianças.
Jorin criava portais sombrios. Lysa controlava água com precisão cirúrgica. Nayel conseguia conversar com criaturas mágicas e invocá-las por instinto.
E Neko...
Micael — Você já tentou de tudo, meu filho — dissera o pai certa vez, com pesar. — Talvez seu dom seja... invisível.
Invisível era uma palavra bonita para “inexistente”.
Naquela noite, como todas as outras, Neko ficou acordado até mais tarde, olhando o céu pela janela do quarto. Do alto da Travessa dos Sabores, as estrelas pareciam dançar entre as torres encantadas de Vandros. Algumas luzes, lá longe, eram de Breaks em patrulha. Outras, apenas faróis de magia.
Ele se deitou sem dizer boa noite.
Ouvia os irmãos rindo no quarto ao lado. Falavam sobre treinamentos, conquistas, futuros grandiosos.
E ele... sonhava pequeno. Sonhava em sentir algo. Qualquer coisa.
Até mesmo uma faísca que doesse, só pra provar que ele ainda podia brilhar.
Mas nenhuma estrela caiu naquela noite.
Só o silêncio caiu sobre ele. Pesado, conhecido.
No dia seguinte, como sempre, ele acordou antes do sol. Preparou os ingredientes. Organizou os talheres. E saiu para comprar pão na rua de trás, como fazia toda manhã.
Mas algo mudou.
No beco entre as lojas encantadas, havia um brilho estranho sob a pilha de caixas. Um reflexo, como se algo respirasse no escuro.
Curioso, Neko se aproximou.
Ali, coberta por poeira e envolta em um padrão de símbolos antigos, estava uma chave preta com detalhes roxos. O metal parecia vivo, pulsando devagar — como um coração adormecido.
Neko segurava a chave entre os dedos, franzindo a testa enquanto o brilho roxo pulsava com mais intensidade, como se respondesse à sua presença. O metal era frio, mas algo dentro dele queimava — uma ansiedade antiga, selvagem, incômoda.
Ele a ergueu, aproximando do rosto, tentando entender... até que sentiu.
Uma dor aguda no peito.
Neko cambaleou para trás quando um símbolo em forma de cadeado surgiu bem no centro do seu tórax, feito de energia negra, coberto por circuitos e glifos arcanos. A chave reagiu. Vibrou como se estivesse viva, liberando ondas de calor que faziam o ar ondular ao redor.
Seu corpo começou a suar. O peito queimava.
Neko — Q-que chave é essa...? Que cadeado é esse...? — murmurou ofegante, os pensamentos correndo em desespero.
As perguntas batiam uma nas outras em sua mente. O medo dizia “solte isso”. A lógica gritava “fuja”.
Mas algo... mais profundo dizia: "coloque".
Com o coração disparado, os olhos fechados e a garganta seca, Neko encaixou a chave no cadeado.
Por um instante, o mundo parou.
Nada. Nenhum som. Nenhum vento. Nenhum brilho.
Até que a chave desapareceu no ar como poeira cósmica, e o cadeado estalou com um som seco, destravando com um clique que reverberou dentro do corpo de Neko.
Foi então que veio a luz.
Seu corpo foi envolvido por uma energia dourada e roxa, seus batimentos se tornaram ensurdecedores, como trovões em seu próprio peito.
Símbolos começaram a se formar ao seu redor, girando, codificando. Linhas de código e runas dançavam como serpentes em sua pele.
E então, um som cortou o silêncio:
[ SISTEMA DE CRESCIMENTO ATIVADO ]
[ PORTAL DE ACESSO INICIAL – ABRINDO... ]
Um rasgo surgiu no espaço à sua frente. Um portal com bordas instáveis e núcleos brilhando em espirais o sugou antes que ele pudesse sequer reagir.
O mundo desapareceu.
E Neko... também.
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Atualizado até capítulo 34
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