Capítulo 3 – A Noite do Lago

A água estava escura.

Helena afundava lentamente, os cabelos flutuando ao seu redor como tentáculos de uma medusa esquecida. As luzes da escola tremeluziam ao longe, distorcidas pelo movimento da superfície. O som era abafado, como se o mundo tivesse sido silenciado por um travesseiro molhado.

Ali, no fundo do lago, o tempo parou.

Mas sua mente não.

As lembranças batiam como marretas contra o peito. Fragmentos da última noite, embaralhados, ainda ecoavam.

— “Vamos só zoar ela um pouco, vai ser engraçado…”

— “Ninguém vai saber, ela mesma vai sumir por vergonha depois.”

— “Filma, Val, filma isso...”

Helena estava viva, sim. Mas presa. Presa em memórias que não passavam. Que sangravam.

 

Tudo começou com um convite inocente. Arthur havia enviado uma mensagem, dizendo que queria conversar.

— “Só nós dois. No lago. Me perdoa por tudo, Helena. Por favor.”

Ela quase não foi. Mas o coração... era burro.

E parte dela ainda queria acreditar.

Quando chegou, ele estava lá. Sorridente. Bonito. Do jeito que ela lembrava quando tudo começou. A pele bronzeada, o cabelo bagunçado, o olhar de quem sabia exatamente o que dizer para desmontá-la.

— “Você veio...”

— “Você me chamou.”

Arthur caminhou até ela devagar, pegou sua mão, e olhou nos olhos. A voz dele era baixa, carregada de algo que ela não conseguia decifrar.

— “Me desculpa... por fazer você se apaixonar.”

Helena arregalou os olhos. A frase era um soco. Mas ele não a largou.

— “Desculpa... por não ter sentido o mesmo.”

Ela quis responder, mas foi aí que ouviu as risadas.

Valentina saiu de trás das árvores, com o celular apontado, gravando.

— “Ai, que drama, Helena. Vai chorar agora?”

E então vieram os outros. Cinco. Talvez seis. Máscaras de carnaval. Capuzes. Garrafas de bebida.

— “Olha quem caiu de novo no teatrinho do Arthur.”

— “Ela achou mesmo que ele gostava dela, coitada.”

Helena recuou. Os pés afundando na lama. Os olhos molhados — não só de lágrimas. De confusão. De medo.

— “Para... isso não é engraçado...”

Mas ninguém parou.

Riram. Correram ao redor dela. Gritaram. Alguém tirou seu celular. Outro puxou o vestido. Não chegaram a violentá-la… mas a expuseram. A quebraram com palavras. Com imagens. Com o toque cruel da humilhação.

E quando ela correu em direção ao lago, desesperada, escorregou. Caiu. Ninguém ajudou.

Arthur apenas observou.

Sem rir.

Sem falar.

Sem fazer nada.

A última coisa que Helena ouviu antes de afundar foi:

— “Melhor assim. Ela vai sumir. Vai fazer um favor.”

 

Agora, presa entre mundos, Helena revivia esse momento todos os dias. Mas algo estava diferente agora.

O ódio estava amadurecendo.

Já não era só raiva. Era foco.

Ela não queria apenas fazer justiça.

Ela queria que eles sentissem.

A vergonha.

O medo.

O desejo sem resposta.

Ela queria invadir a mente deles. Tocar seus medos mais íntimos. Reescrever suas vontades.

Transformar culpa em obsessão.

 

Lívia sonhou com o lago.

Estava nua, flutuando sobre a água escura. Ao seu redor, pétalas de flores mortas formavam um círculo. E Helena surgia por baixo da superfície, com olhos brilhantes e boca entreaberta.

— “Você me ouve, Lívia?”

— “Sim...”

— “Você me deseja?”

Lívia hesitou. Mas seu corpo respondeu antes que pudesse mentir. Sentiu o arrepio. A curiosidade. O medo quente. E deixou que Helena subisse, tocasse, se fundisse.

O beijo era úmido, pesado, como se a língua de Helena carregasse memórias líquidas, que escorriam garganta abaixo.

— “Então sente. Tudo o que eu senti.”

E então veio a dor.

E o prazer.

E a sensação de estar morrendo… e despertando ao mesmo tempo.

 

Lívia acordou ofegante. Molhada. Assustada. Excitada.

O caderno estava ao lado da cama, com novas palavras escritas. Palavras que ela não lembrava de ter colocado ali:

> “A próxima será Júlia.

Queimou meu segredo.

Vai sentir a mesma chama.”

Ela conhecia Júlia. A líder do grupo popular. A que começou os boatos. A que compartilhou os vídeos.

E agora… estava marcada.

 

Na escola, Júlia entrou no banheiro do segundo andar com uma amiga, rindo alto.

— “Aquilo tudo ontem foi um susto. Vírus no sistema. Essa escola é uma piada.”

Quando a amiga saiu para buscar papel higiênico, Júlia ficou sozinha diante do espelho, retocando o batom.

Mas algo no reflexo chamou sua atenção. Havia um borrão. Uma sombra atrás dela.

— “Tem alguém aí?”

Nada.

Ela se virou. Vazio.

Mas quando olhou de novo, o espelho mostrava seu rosto… derretendo.

Gritou. E a luz apagou.

Helena sussurrou em seu ouvido, quase carinhosa:

— “Você queimou meu nome... agora vai arder também.”

 

E enquanto as lâmpadas estouravam, e a fumaça enchia o banheiro, Júlia apareceu do lado de fora.

Correndo.

Chorando.

Com a blusa chamuscada e bolhas nos ombros.

Disse que “alguém” tentou atear fogo nela.

Mas não havia ninguém lá dentro.

Só o reflexo.

Só a flor seca no chão.

Só o nome na parede, rabiscado com batom:

> “Helena.”

A escola estava mergulhada em um silêncio desconfortável no dia seguinte.

Júlia não apareceu. Os boatos eram os mais variados: surto, tentativa de suicídio, internação por trauma psicológico. Mas ninguém — além de Lívia — sabia da verdade.

Helena estava escolhendo um por um.

E ela não estava brincando.

 

Lívia estava sozinha na sala de leitura quando sentiu a presença outra vez. Como uma mudança súbita na pressão do ar. Como se o próprio tempo tivesse segurado o fôlego.

— “Você voltou,” ela murmurou, sem levantar os olhos do caderno.

As páginas tremiam sozinhas, como se viradas pelo vento — ou por dedos invisíveis.

E então ela ouviu a voz.

— “Estou em você agora. E você me deixou entrar.”

Lívia fechou os olhos. A pele arrepiava, e um calor subia da base da espinha até a nuca. Não era medo. Não apenas. Era algo mais profundo. Mais íntimo.

Helena estava se fundindo a ela. Corpo, desejo e dor, tudo num mesmo ritmo.

— “Você quer que eu pare?” — perguntou a voz, melódica, arrastada, quente.

— “Não…” — Lívia respondeu, quase sem som, os lábios entreabertos.

Ela sentiu mãos invisíveis tocarem sua cintura. Subirem pelas costelas. E depois… um beijo, suave como o primeiro sopro da morte.

Na biblioteca vazia, ela se curvou para frente, suprimindo um gemido. Sabia que, se alguém a visse assim, pensaria que estava enlouquecendo.

Mas não era loucura.

Era Helena.

E ela era viciante.

 

Mais tarde, naquele mesmo dia, Lívia encontrou Arthur na saída da escola. Ele estava pálido, as olheiras fundas, a expressão paranoica. Carregava um livro contra o peito como se fosse um escudo.

— “Aconteceu de novo,” ele disse, sem rodeios. “Com a Júlia.”

Lívia fingiu surpresa.

— “O que você quer dizer?”

— “Não brinca comigo. Eu sei que você sabe. Eu sinto a presença dela… nos lugares onde você passa.”

Lívia sorriu, de leve. Um sorriso triste.

— “Então talvez você devesse perguntar o que foi que fez, Arthur.”

Ele a encarou. O silêncio entre os dois era pesado, carregado de uma tensão que não era apenas medo. Era desejo. Culpado, sujo, incontrolável.

— “Eu não fiz nada,” ele disse, a voz trêmula.

— “Esse é o problema,” Lívia respondeu. “Ninguém fez nada.”

Antes de se virar e ir embora, ela encostou os lábios no ouvido dele e sussurrou:

— “Ela lembra de tudo, Arthur. Até do que você não teve coragem de impedir.”

Arthur ficou parado ali, como se tivesse sido enterrado de pé.

 

Naquela noite, Helena voltou para ele.

Apareceu deitada ao seu lado, nua, molhada, o cabelo pingando como se tivesse saído direto do lago.

Arthur queria gritar, mas não conseguia. O corpo não obedecia. Só os olhos podiam se mover. E os dela o prendiam.

— “Por que me deixou afundar?” — ela perguntou, com um tom de voz que misturava dor e luxúria.

— “Eu… eu não sabia...”

— “Mentira.”

Ela subiu sobre ele, a pele gelada, o toque etéreo. Os corpos não se tocavam no mundo físico. Mas no mental… estavam colados. Fundidos.

Arthur chorava. Mas também gemia.

— “Isso é punição?” — ele perguntou, entre o medo e o prazer.

— “Não.”

Helena sorriu.

— “Isso é só o começo.”

E então ela se foi.

Deixando o quarto frio.

O lençol encharcado.

E a alma dele mais rachada do que nunca.

 

Longe dali, na casa de Lívia, o caderno se abriu sozinho.

As páginas tremularam até encontrarem a próxima folha em branco.

A flor seca caiu do meio das folhas.

E uma nova palavra surgiu, escrita em tinta vermelha:

> “Gabriel.”

Era o próximo.

E Helena estava mais forte.

Mais faminta.

Mais viva do que nunca.

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