Contos de um Mundo Sombrio
Eu nunca gostei de espelhos. Sempre me incomodou a ideia de que eles guardam mais do que mostram, como se o reflexo tivesse vida própria, preso entre o vidro e a moldura. Mas naquela manhã fria, enquanto andava pelo mercado de variedades do centro, algo me atraiu para aquele espelho.
Era uma peça grande, com uma moldura trabalhada em ferro retorcido, cheia de detalhes que pareciam arabescos, mas que, se olhados por tempo demais, lembravam rostos ou mãos. O ferro exalava um cheiro metálico, frio, quase de sangue seco. O vidro tinha uma pequena fissura no canto inferior esquerdo, nada que comprometesse sua função.
— É antigo, muito antigo. - o vendedor disse, esfregando as mãos sujas de fuligem. — Mas se quiser levar, precisará cuidar muito bem dele.
Eu deveria ter perguntado o que ele queria dizer com aquilo, mas apenas assenti, pechinchando o preço por conta da fissura. Ele aceitou rápido demais. Hoje percebo que deveria ter desconfiado, mas, na época, pensei que tinha feito um bom negócio.
Quando o coloquei no meu quarto, encostado na parede perto da janela, senti uma estranha satisfação. Era como se aquele espelho pertencesse ali, como se tivesse esperado por mim. No início, ele era apenas mais um objeto, algo bonito para preencher o vazio da minha casa…e da minha vida.
Foi na segunda semana que percebi. Eu estava me arrumando para sair, escovando o cabelo na frente do espelho, quando notei algo estranho. Meus movimentos pareciam atrasados. Não muito, era quase imperceptível, um leve descompasso no levantar da escova.
Fiquei encarando o vidro, esperando que aquilo acontecesse de novo. Nada. Suspirei e ri de mim mesma. Estava cansada, só isso. Trabalho demais, noites de sono curtas. Uma mente exausta prega peças.
Mas não era apenas cansaço.
Alguns dias depois, ao retocar o batom, percebi que o reflexo sorria. Um sorriso discreto, malicioso.
Eu não estava sorrindo.
Congelei, com o batom ainda na mão, tentando entender o que havia acabado de acontecer. Pisquei algumas vezes, mas o reflexo já estava “normal”.
— É a fissura no vidro. - pensei — Ela distorce a imagem.
Eu queria acreditar nisso. Mas as pequenas discrepâncias continuaram. Movimentos fora de sincronia. Expressões erradas. Às vezes, parecia que o reflexo não era eu, mas outra pessoa me imitando.
Foi numa noite de insônia que percebi algo ainda mais perturbador. Eu estava deitada, virada para o espelho. A luz da lua entrava pela janela, tingindo o quarto de prateado.
E então eu vi.
Meu reflexo se mexeu.
Não foi um movimento sutil. Era como se “eu” no espelho tivesse dado um passo em minha direção, embora eu estivesse imóvel.
Gritei e acendi a luz. O espelho parecia normal, mas eu sabia que algo estava errado.
Pensei em me livrar dele. Vender, quebrar, deixar na rua, mas algo me impedia. Toda vez que tentava tirá-lo do quarto, sentia um peso estranho, como se o espelho fosse parte de mim.
As noites ficaram piores. Eu acordava com a sensação de ser observada. Não pelas sombras, mas pelo meu reflexo. Comecei a ouvir sussurros, tão baixos que pareciam vir de dentro da minha cabeça.
— Venha, Ana… estou aqui.
Era uma voz feminina, doce. Familiar. Como se fosse… a minha.
Certa noite, não aguentei mais. Peguei um martelo e fui até o espelho.
Estava cansada. Apavorada.
— Você não vai me controlar! - gritei.
Mas quando ergui o martelo, meu reflexo não me imitou.
Ela sorriu.
Eu parei.
O ar sumiu.
Antes que pudesse reagir, ela estendeu a mão, atravessando o vidro.
Senti o toque gelado em meu braço antes que tudo escurecesse.
Quando acordei, estava de volta à cama. O espelho refletia a luz suave da manhã. Intacto. Nenhuma rachadura. Nenhum estilhaço.
Tudo parecia… normal.
Mas algo mudou.
Olhei para o espelho e vi, pela primeira vez, o reflexo de alguém que não sou eu.
Era eu, mas não era. O rosto mais jovem, mais bonito, os olhos mais vivos.
Ela sorria. Eu, não.
Tentei sair do quarto, mas algo me impediu. Quando passei diante do espelho, vi apenas o vazio do vidro, como se o reflexo estivesse me observando do outro lado.
Agora, sou eu quem observa o reflexo.
E enquanto me vejo, sei que ela está lá, sorrindo, esperando o momento certo para tomar o meu lugar.
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Atualizado até capítulo 36
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