Salvador e carcereiro

Nove anos se passaram desde que Júlio foi largado naquela estrada deserta, sob aquela tempestade.

O bar já não tinha mais o mesmo cheiro de cigarro velho e gordura esquecida. Júlio cuidava da limpeza com zelo quase obsessivo. As paredes haviam sido pintadas, as janelas trocadas, e até a placa antiga com letras falhadas foi substituída por uma nova: “Bar do L & J”.

Lucas e Júlio.

Era assim que todos os vizinhos, caminhoneiros e fregueses conheciam agora o lugar. Um bar que abria cedo, fechava tarde, e parecia ser tocado por dois irmãos inseparáveis. Lucas, mais sério e reservado. Júlio, gentil, calmo, de fala baixa. Os dois faziam tudo ali: serviam, limpavam, cozinhavam. E, quando o dia acabava, iam juntos para os fundos da casa: o mesmo cômodo onde Silvino um dia dormiu, e que agora era o quarto do casal.

Ninguém perguntava muito. E os que perguntavam, não perguntavam de novo.

Aos 20 anos, Júlio tinha um corpo mais forte, postura firme, mas os olhos continuavam jovens demais para a alma que carregavam. Ele andava como quem pensa duas vezes antes de pisar. Falava pouco. Observava tudo. Sua presença era tranquila, mas seu silêncio carregava uma história que ninguém conhecia por completo.

Lucas, aos 27, estava mais robusto, com braços marcados pelo trabalho pesado e o rosto carregando rugas discretas de tensão. Era ele quem lidava com as contas, com os fornecedores, com o mundo fora dali. Júlio era o interior do bar. Lucas, as portas fechadas.

Mas o que ninguém via era o que acontecia quando o expediente acabava.

Lucas trancava as portas. Conferia duas, três vezes. Às vezes, sem motivo aparente. Costumava perguntar a Júlio se ele tinha falado com alguém demais durante o dia. Se havia dado atenção a algum freguês que não devia. Se tinha sorrido além da conta para algum caminhoneiro.

Não gritava. Não batia. Mas cobrava com os olhos.

Com o controle.

— Você anda distante — disse uma noite, depois que fecharam o caixa.

— Tô cansado. Só isso.

— Cansado de mim?

— Não foi isso que eu disse.

— Eu conheço teu silêncio, Júlio. Conheço ele melhor do que você.

Lucas se aproximou. Passou a mão pela nuca do outro, segurando-o pela parte de trás da cabeça.

— A gente se tem. Lembra? É só isso que importa.

Júlio assentiu. Como sempre.

Não havia para onde fugir.

Lucas era, ao mesmo tempo, salvador e carcereiro. Era quem o arrancou das mãos de Silvino, quem enterrou o velho, quem limpou cada vestígio daquele passado. Mas também foi quem, ao longo dos anos, ergueu uma nova prisão — mais sutil, mais silenciosa. Feita de controle, ciúme e uma espécie de amor doente, onde Júlio não podia respirar sozinho.

As noites eram longas. Dormiam juntos. Mas agora o calor entre os dois já não era o mesmo. Júlio não sabia mais o que sentia. Amor? Dívida? Gratidão misturada com cansaço? Às vezes sonhava com a estrada. Outras vezes, com um grito que nunca deu.

Naquela semana, algo diferente aconteceu.

Um carro parou diante do bar, no fim da tarde. Era velho, com a pintura desgastada. Um homem desceu. Usava um boné surrado, jaqueta de couro e olhar hesitante. Ficou parado por alguns minutos, observando a fachada do bar, como se estivesse tentando reconhecer algo.

Júlio viu da janela da cozinha.

Seu coração parou por um instante.

O homem entrou.

Lucas estava no caixa.

O homem olhou em volta, caminhou devagar até o balcão. Quando viu Júlio sair da cozinha, parou.

Seus olhos se fixaram no rosto do jovem.

— Júlio?

O bar ficou mudo.

Lucas ergueu a cabeça.

Júlio sentiu as pernas falharem.

Era ele.

Nove anos depois.

Aquele homem que o largou na chuva.

O pai.

O homem estava diferente. Mais velho, mais magro, com o rosto encovado. Mas os olhos eram os mesmos. Olhos que Júlio nunca mais quis ver.

— Sou eu... — disse o homem, sem saber o que dizer depois. — Tentei te encontrar. Demorei. Mas tô aqui.

Júlio não respondeu.

Lucas se aproximou lentamente. Os dois homens se olharam como animais prestes a morder.

— Tem alguma coisa que você quer aqui? — perguntou Lucas, seco.

— Eu vim pelo meu filho.

Lucas riu, sem humor.

— Filho? Você só pode estar brincando.

O homem olhou para Júlio.

— Eu errei. Eu sei. Mas quero consertar...

— Ele não precisa de você — interrompeu Lucas.

Júlio continuava calado.

Por dentro, um turbilhão.

O passado, o abandono, a estrada, a chuva, a lama, o bar, o toque, a faca... tudo girava em sua mente.

Ele queria gritar.

Mas só conseguiu dizer:

— Vai embora.

O pai hesitou.

— Júlio...

— Vai embora. Agora.

Lucas não se moveu. Só observava.

O homem deu um passo para trás, depois virou-se e saiu.

O bar voltou ao silêncio.

Júlio sentou-se, os braços trêmulos.

Lucas ajoelhou-se diante dele.

— Eu tô aqui.

Júlio olhou nos olhos dele.

E não sabia mais se aquilo era amor ou apenas medo com outro nome.

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