Silvino tentou se controlar, por alguns dias.
Não porque se arrependesse.
Mas porque Lucas o estava observando. Porque agora havia alguém entre ele e Júlio. E isso, para Silvino, era como uma coleira curta demais. Ele não era homem de ser vigiado.
Começou a beber mais. Passava horas resmungando atrás do balcão, olhando feio para o filho e ignorando o garoto que antes tratava com uma “gentileza” deformada. Agora, mal falava com Júlio. E quando falava, era com raiva.
— Tá achando que é dono do bar agora, moleque? — gritou certa noite, quando Júlio esbarrou numa garrafa no depósito. — Anda logo! Lixo como você devia ter morrido naquela estrada!
Lucas apareceu na mesma hora, como se tivesse escutado do outro lado da parede.
— Fala com ele assim de novo e eu juro que você vai se arrepender.
Silvino riu, cínico, e bateu a mão no balcão.
— Me arrepender? Você é só um moleque com voz grossa. Eu sou teu pai. E isso aqui ainda é meu!
Lucas não respondeu. Mas permaneceu ali, sem recuar.
Júlio, entre eles, sentia o mundo ruir. O bar, que um dia foi um abrigo — ainda que duvidoso — agora era uma jaula. Uma armadilha. Ele sabia que Silvino não ia parar. Só estava esperando a brecha certa. Um momento de descuido do Lucas.
E ele estava certo.
Naquela noite, chovia. A mesma chuva daquela estrada, nove anos atrás, parecia ter voltado. O som das gotas grossas caindo no telhado metálico do bar trazia de volta memórias que Júlio queria esquecer.
Era tarde. Os últimos bêbados já haviam saído. As luzes estavam parcialmente apagadas, e o cheiro de álcool pairava no ar como uma névoa.
Lucas estava no quarto dos fundos, dormindo.
Ou parecia estar.
Júlio também havia se deitado cedo, tentando esconder-se entre os cobertores, quando ouviu a porta ranger.
Passos.
Ele prendeu a respiração.
A maçaneta se mexeu devagar.
Silvino entrou. Estava bêbado, os olhos avermelhados e a respiração pesada. Chegava cambaleando, mas a intenção era clara. Sua sombra projetada pela luz do corredor fazia dele um monstro de pernas largas e braços prontos para machucar.
— Júlio... — murmurou. — Acha que pode me evitar pra sempre?
O garoto não respondeu. Ficou encolhido, tremendo sob o lençol.
Silvino se aproximou da cama. Estava prestes a tocar nele quando a porta se escancarou.
— Eu avisei.
Lucas estava ali. A faca da cozinha na mão. Os olhos fixos, frios, sem hesitação.
Silvino virou-se.
— Moleque... guarda isso... não faz merda...
Mas Lucas já avançava.
A lâmina brilhou por um segundo.
E depois mergulhou.
Uma. Duas. Três vezes.
Silvino tentou lutar. Bateu em Lucas, derrubou uma cadeira. Mas o filho era mais forte agora. Mais rápido. Estava sóbrio. E estava tomado por algo que não se apagava. Raiva. Ódio.
Silvino caiu de joelhos, tossindo sangue. Tentou dizer algo. Um insulto, talvez. Um pedido de perdão. Ninguém saberia.
Lucas cravou a faca mais uma vez, no peito.
E então... o silêncio.
O corpo do homem caiu de lado, imóvel.
Júlio estava de pé no canto do quarto, paralisado. Havia sangue no chão, no lençol, nos braços de Lucas. Os olhos do garoto não piscavam. Estavam arregalados, sem saber se deviam chorar ou agradecer.
Lucas olhou para ele. Respirava com dificuldade. Suado. Sujo.
— Acabou — disse. — Ele nunca mais vai tocar em você. Nunca mais.
Júlio caiu de joelhos e começou a chorar.
Lucas se ajoelhou ao lado dele e o abraçou. Um abraço apertado, sem palavras. Um abraço que dizia tudo. Júlio chorou, e chorou, e chorou até não restar mais nada. Tudo o que estava preso dentro dele nos últimos dias, semanas, meses... desabou ali, nos braços do único que o ouviu. Do único que o protegeu.
Quando amanheceu, o corpo de Silvino estava enrolado num lençol. Lucas o enterrou atrás do bar, entre a cerca e a mata, num buraco cavado com as próprias mãos. Júlio ajudou. Em silêncio. Com olhos secos. Era como enterrar não só o corpo do velho, mas tudo o que ele representava.
Naquela mesma tarde, Lucas limpou tudo. Jogou os lençóis no fogo, lavou o chão, passou água sanitária no corredor. Ninguém perguntou por Silvino. Ele era um velho rabugento, sumir por uns dias não era estranho. No bar, Lucas assumiu o balcão como se nada tivesse acontecido. Júlio continuava ajudando, calado, submisso.
Mas havia algo diferente agora.
O medo tinha mudado de forma.
Ele ainda estava ali. Mas agora andava de mãos dadas com a gratidão.
Naquela noite, Lucas deitou-se ao lado de Júlio. O quarto estava escuro, o colchão apertado, e os corpos, próximos demais.
— Você tá seguro agora — sussurrou Lucas. — E eu nunca mais vou deixar ninguém te machucar.
Júlio não respondeu. Mas não se afastou.
E o silêncio que caiu entre os dois não era mais vazio.
Era um tipo novo de vínculo. Torto, nascido do trauma, do sangue e da necessidade.
E que ainda ia crescer muito mais.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 5
Comments