Katare caminhava pelo campo agora mais sereno, onde os cristais antes vibrantes pulsavam num ritmo suave, como o bater de um coração. Ainda sentia a fusão com sua sombra queimando sob a pele — não como dor, mas como uma lembrança constante do que havia enfrentado. A integração trouxera paz, sim, mas também um peso novo: o de saber que não havia mais onde esconder suas próprias feridas.
“Você está diferente”, disse Caelion, aproximando-se com passos tão leves que não perturbavam nem o solo translúcido.
“Estou inteira”, respondeu ela, ainda sem saber se isso era uma benção ou uma responsabilidade maior.
O céu se retorcia em padrões hipnóticos acima deles. Fragmento 11 parecia agora respirar em sintonia com a presença de Katare. Como se sua aceitação tivesse trazido não apenas equilíbrio a si mesma, mas também ao tecido instável daquela dimensão.
“Você disse que um portal foi aberto.”
Caelion assentiu. “Sim. Ele se formará na Montanha do Olho Invertido, além do Desfiladeiro Sem Nome. Mas não é um caminho simples. Nada aqui é.”
Ela segurou o colar em seu pescoço — a única coisa que havia vindo com ela do mundo original. Não lembrava de colocá-lo, e mesmo assim, ali estava. Um pequeno cristal vermelho, que parecia pulsar quando seus pensamentos se voltavam para... ele.
Lucas.
Um arrepio percorreu-lhe a espinha. As memórias da explosão mágica ainda vinham em fragmentos: os olhos dele banhados em dor, a energia que escapou do controle, e então a escuridão que a tragou. Nada havia sido planejado. Ela não queria estar ali. E ainda assim... estava. Não por escolha. Por acaso. Ou destino.
“Por que esse multiverso me aceitou?”, perguntou, mais para si mesma do que para o guardião.
“Porque nem tudo que é caos é sem propósito”, respondeu Caelion. “Às vezes, as maiores verdades só podem ser vistas quando estamos longe de tudo que nos distrai. Quando somos arrancados das certezas.”
Ela permaneceu em silêncio. Sabia que Lucas estava em perigo. Que algo sombrio o consumia. E apesar de tudo, a dor nos olhos dele não era por ela — era por si mesmo. Pela culpa, talvez. Pela transformação que não conseguia conter.
Mas isso ela ainda não podia dizer em voz alta. O momento não havia chegado.
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O desfiladeiro se abria à frente como uma cicatriz rasgada na pele do mundo. Não havia ponte, apenas uma névoa densa que serpenteava no vazio abaixo. Vozes sussurravam dentro dela, palavras desconexas, memórias de outros viajantes perdidos talvez. Ou ecos da própria mente.
Katare hesitou. O caminho adiante era invisível.
“Como atravesso isso?”, perguntou.
Caelion apontou para o colar em seu peito. “Esse fragmento do seu mundo ainda responde à sua intenção. Mas não bastará apenas desejar atravessar. Você terá que acreditar que o outro lado existe — e que você tem o direito de chegar até ele.”
Ela fechou os olhos, respirou fundo. Pensou em Lucas. Pensou em si mesma. Em quem precisava ser, mesmo que ainda não soubesse como. E então, deu o passo.
Nada sob seus pés.
Por um instante, só o vazio.
Mas antes que o medo pudesse dominá-la, uma ponte feita de luz e fumaça se formou sob seus pés, moldada por sua própria vontade. Cada passo criava o seguinte. Cada decisão, uma continuação.
Do outro lado, a Montanha do Olho Invertido se erguia, colossal, com um cume que girava como uma íris viva. E em seu topo, envolta por uma espiral de vento e energia, pulsava a abertura do portal.
Ela estava perto.
Mas o fragmento ainda não havia terminado com ela.
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A subida foi tortuosa. O tempo se torcia a cada curva da trilha. Às vezes, o dia clareava repentinamente, outras vezes a noite caía sem aviso. E em certos trechos, tudo congelava por segundos — vento, som, até os próprios pensamentos.
Era como se a montanha testasse sua sanidade.
E foi no meio dessa subida, entre a névoa densa e a luz que oscilava, que Katare ouviu uma risada.
“Você acha que pode simplesmente sair daqui?”
A voz era familiar. Não sua sombra — outra presença.
Do topo de uma pedra escura, surgiu uma figura encapuzada. Sua pele era cinza pálida, olhos negros como breu, e um sorriso que era tudo, menos acolhedor.
“Quem é você?”, Katare perguntou, em posição defensiva.
“Um fragmento... do que você ainda não entende”, disse ele, descendo da pedra como se flutuasse. “Mas pode me chamar de Morthal. Sou o primeiro guardião do limiar. E você não passará por mim sem pagar o preço.”
Ela se preparou para lutar, mas ele levantou a mão.
“Não. Não com força. Aqui, tudo se negocia com verdade.”
“E o que você quer de mim?”
Morthal estendeu uma esfera negra, dentro da qual pulsavam imagens distorcidas — visões de Katare em momentos de falha, de hesitação, de raiva. “Diga-me: se pudesse voltar, você mudaria o que fez com Lucas?”
A pergunta atingiu fundo. Katare não respondeu de imediato.
Porque ela sabia a resposta. Mas não sabia se queria dizê-la em voz alta.
“Não mudei o que aconteceu”, ela disse, por fim. “Mas mudaria a forma como reagi. Eu o vi desmoronar... e fiquei com medo.”
Morthal sorriu, como se tivesse ouvido exatamente o que queria.
“Então passe. O portal te espera.”
A figura desapareceu, consumida por vento e poeira. E diante de Katare, o vórtice se abriu — um redemoinho de luz dourada e prateada, convidando-a a atravessar.
Mas ela hesitou um instante.
“Lucas…”, murmurou. O nome era uma âncora, mas também uma bússola.
Ela sabia o que precisava fazer. Mas ainda não sabia o que ele faria quando a visse.
E era esse o mistério que ainda pairava. Porque Lucas… talvez não quisesse ser salvo.
Katare deu um passo à frente.
Atravessar o portal foi como mergulhar em um rio sem fundo. As luzes giravam em espirais ao seu redor, e sons longínquos — de risos, gritos, lamentos — ecoavam em sua mente, vindos de tempos e lugares que ela jamais conhecera. O colar em seu pescoço aquecia-se mais a cada segundo, como se estivesse sendo ativado por uma nova força.
Quando seus pés tocaram o solo do outro lado, Katare caiu de joelhos, ofegante.
A paisagem agora era outra.
O céu tinha três luas, cada uma com uma coloração distinta: uma azul, uma verde, e uma vermelha. O chão era coberto por uma floresta de galhos dourados e folhas negras, e uma brisa morna soprava com um sussurro quase humano. Mas o que mais chamou sua atenção foi a sensação — aquela pressão silenciosa, invisível, que fazia sua pele arrepiar.
Alguém… ou algo… a observava.
Ela ficou de pé lentamente. Não estava sozinha. E sabia que o tempo era curto.
Mesmo sem saber para onde exatamente aquele novo mundo a levaria, Katare apertou o colar com força. O nome de Lucas ecoava em seu peito como um chamado silencioso.
Mas o reencontro — e o verdadeiro confronto — ainda estavam por vir.
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Atualizado até capítulo 21
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