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Bab al-Azizia– Ufa,
até que enfim Trípoli! – A garota ao meu lado demonstrava tamanho contentamento
em perceber as primeiras casas da cidade que até me senti um pouco mais
tranquila.
– Já
estava cansada de Sirte – soltou a outra.
Eu não sabia que conclusão tirar daqueles comentários, mas
registrava tudo, concentrada e ansiosa por captar a menor informação que fosse.
Tínhamos rodado por quase quatro horas em alta velocidade, intimidando carros e
transeuntes, que paravam para a passagem do comboio. A noite caía lentamente, e
a cidade surgia ao longe como um amontoado de ruas, arranhacéus e luzes. De
repente, diminuímos a velocidade para passar pelo imenso portal de uma grande
muralha fortificada. Soldados estavam de guarda, mas a descontração das garotas
no carro indicava que estavam voltando para casa. Uma delas me disse
simplesmente:
– Chegamos
a Bab al-Azizia.
Obviamente eu conhecia bem o nome. Quem na Líbia não o
conhecia? Era a sede do poder por excelência, símbolo da autoridade e da força:
a residência fortificada do coronel Kadafi. O nome significa, em árabe, “a
porta de Azizia”, a região que se estende a oeste de Trípoli; mas, na cabeça
dos líbios, aquela fortaleza era sobretudo símbolo de terror. Um dia papai me
mostrara o imenso portal, encimado por um pôster gigantesco do Guia, assim como
a muralha, que tinha quilômetros. Ninguém nem pensaria em caminhar ao longo
dela. Seria detido por espionagem e, ao menor movimento suspeito, alvejado por
balas. Haviam nos contado a história de um pobre taxista que, por infelicidade,
teve um pneu furado ao pé da muralha. Seu carro foi explodido e ele morreu no
local, antes mesmo de conseguir tirar o estepe do porta-malas. E no bairro ao
redor telefones celulares eram proibidos.
Passamos pelo portão principal, adentrando uma área que me
pareceu imensa. Os edifícios com fachada bastante austera e aberturas estreitas
– simples fendas no lugar de janelas – deviam ser o alojamento dos soldados.
Havia gramados, palmeiras, jardins, dromedários, mais construções austeras e
algumas casas aninhadas na vegetação. Exceto pelos numerosos portões de
segurança que atravessávamos um após o outro e uma sucessão de muros, que eu
não entendia como funcionavam, o lugar não me pareceu muito hostil. O carro
parou diante de uma casa imensa. Mabruka logo apareceu, parecendo ser a dona do
lugar.
– Entre.
E deixe suas coisas no seu quarto.
Segui as garotas, que passaram por uma porta em forma de
arco, toda de concreto, em seguida descemos alguns degraus e passamos por um
detector de metais. O ambiente era frio e muito úmido. Na verdade, estávamos no
subsolo. Amal, que ficara ao meu lado no carro, me indicou um pequeno cômodo
sem janelas.
– Esse
vai ser o seu quarto.
Empurrei a porta. Um espelho cobria as paredes de tal
maneira que era impossível escapar à imagem refletida. Duas pequenas camas
ocupavam os cantos do quarto, que tinha ainda uma mesa, uma minitelevisão e um
pequeno banheiro. Eu me despi, tomei banho e me deitei para dormir. Mas era
impossível. Liguei a televisão e chorei silenciosamente ao som de músicas
egípcias.
No meio da noite, Amal entrou em meu
quarto.
– Coloque
rápido uma lingerie bem bonita. Vamos subir paraver o Guia.
Amal era realmente bela. De shorts e regata de cetim, dava
para ver que tinha postura; eu mesma estava impressionada. Coloquei um
baby-doll vermelho, que ela sugeriu, subimos uma escadinha que eu ainda não
havia notado, à direita do meu quarto, e logo nos vimos diante da porta do
quarto do mestre, exatamente em cima do meu. Era imenso, com espelhos em boa
parte das paredes, uma cama enorme com dossel envolta em tule vermelho, como a
dos sultões de As mil e uma noites, uma mesa redonda, estantes com livros, DVDs e uma coleção de perfumes
orientais, com os quais ele frequentemente borrifava o pescoço, e uma espécie
de escritório onde havia um grande computador. Do lado da cama, uma porta de
correr levava ao banheiro, onde havia uma enorme jacuzzi. Ah, já ia me
esquecendo! Perto do escritório havia um canto reservado a orações, com algumas
edições preciosas do Corão. Menciono isso porque aquilo me intrigava e porque
nunca vi Kadafi orar. Nunca. Exceto uma vez na África, quando teve de fazer uma
oração em público. Quando penso nisso... quanta encenação!
Entramos no quarto, ele estava sentado na cama vestindo um
conjunto esportivo vermelho.
– Ah!
– foi logo dizendo. – Venham dançar, minhas vadias.Vai. Upa! Upa!
Ele pôs a mesma fita velha num gravador e estalava os dedos
enquanto se balançava um pouco. “Seus olhos penetrantes bem poderiam matar...”
Quantas vezes eu ainda teria de ouvir aquela música ridícula! E ele não se
cansava. Amal se esforçava, mergulhando de cabeça no jogo, lançando-lhe olhares
terrivelmente sedutores. Eu não podia acreditar. Ela requebrava, fazia tremular
as nádegas, os seios, fechava os olhos ajeitando lentamente os cabelos para que
caíssem de novo e então os jogava, girando a cabeça. Eu continuava tensa, dura
como um pau, o olhar hostil. Então ela se aproximava me chamando para dançar,
pegava meus quadris, esfregava uma coxa entre as minhas pernas, me estimulando
para que emparelhássemos os movimentos.
– Aí,
minhas vadias! – gritava o Guia.
Ele se despiu, fez sinal para que eu continuasse dançando e
chamou Amal para perto dele. Ela foi e começou a lhe fazer sexo oral. Eu não
podia acreditar no que estava vendo. Perguntei, esperançosa:
– Posso
ir agora?
– Não!
Vem cá, vadia.
Ele me puxou pelos cabelos, me forçou a sentar e me
abraçou, ou melhor, me engoliu, enquanto Amal continuava. Depois, sempre me
segurando pelos cabelos, disse:
– Olha
bem e aprende como ela faz. Você vai fazer a mesmacoisa.
Ele agradeceu a Amal e lhe pediu que fechasse a porta ao
sair. Então se jogou em cima de mim e me violentou por um tempo. Mabruka
entrava e saía como se nada estivesse acontecendo. Ela lhe passava mensagens:
– Leila
Trabelsi pediu que ligue de volta. – Até o momento emque falou: – Pronto, vamos
terminando! O senhor tem outras coisas pra fazer.
Fiquei chocada. Ela podia lhe dizer qualquer coisa. Chego a
acreditar que ele tinha medo dela. Ele entrou no banheiro, sentou na jacuzzi,
que Mabruka deixara encher, e gritou para mim:
– Passe
a toalha! – As toalhas estavam bem ao seu alcance,mas ele queria que eu as
pegasse. – Passe perfume nas minhas costas. – Depois ele apontou para uma
campainha perto do gravador. Apertei. E Mabruka entrou imediatamente. – Arranje
uns DVDs pra essa vadia,
para que ela aprenda seu trabalho.
Cinco minutos depois, Salma entrou no meu quarto com um
aparelho de DVD, que
pegara de outra moradora, e uma pilha de filmes.
– Aqui
estão os pornôs. Olhe bem e aprenda! O mestre vaificar furioso se você não
estiver no ponto. É seu dever de casa!
Meu Deus, a escola... Eu estava tão longe de lá. Fui tomar
banho. Amal, ainda que tivesse seu próprio quarto, instalou-se na cama ao lado.
Fazia uma semana que eu não conversava com ninguém e já não suportava a
angústia e a solidão.
– Amal,
não sei o que estou fazendo aqui. Essa não é minhavida, isso não é normal.
Sinto falta da minha mãe o tempo todo.
Será que eu podia ao menos ligar pra ela?
– Vou
falar com Mabruka.Peguei no sono, esgotada.
Bateram à porta do meu quarto e Salma
entrou bruscamente.
– Suba
do jeito que está. Rápido! Seu mestre quer vê-la.
Eram oito horas da manhã, e eu dormira apenas algumas
horas. Visivelmente, Kadafi também acabara de acordar. Ainda estava na cama,
com os cabelos desgrenhados, e se espreguiçava.
– Vem
pra cama, vadia. – Salma me empurrou violentamente.– E você, traga-nos o café
da manhã. – Ele arrancou minha roupa e partiu para cima de mim com violência. –
Viu os filmes, vadia? Pois agora vai fazer igual!
Ele urrava e me mordia inteira. Violentou-me mais uma vez.
Depois se levantou para degustar seu dente de alho, que lhe conferia
constantemente um hálito detestável.
– Dá
o fora, vadia.
Ao sair, cruzei com Galina e duas outras enfermeiras
ucranianas, que entravam no quarto dele. E naquela manhã compreendi que estava
lidando com um louco.
Mas quem sabia disso? Papai, mamãe, os líbios... todo mundo
ignorava o que se passava em Bab al-Azizia. Todos tinham verdadeiro pavor de
Kadafi, porque rebelar-se contra ele ou criticá-lo renderia uma condenação à
prisão ou à morte, e sabiam que ele era de fato terrível, ainda que o chamassem
de “papai Muamar” e cantassem o hino diante de sua foto. Mas daí a imaginar o
que ele me fizera... Era tão humilhante, tão ultrajante, tão inacreditável. É
isso, era inacreditável! Sendo assim, ninguém acreditaria em mim! E eu jamais
poderia contar minha história. Afinal de contas era Muamar, e, além de ter sido
desonrada, eu é que seria tomada por louca.
Eu ruminava essas ideias quando Amal meteu a cabeça pela
porta.
– Vamos,
não fique aí, vamos fazer um tour!
Pegamos o corredor, subimos quatro degraus e fomos parar em
uma imensa e bem equipada cozinha, que tinha na parede um pôster de uma garota
morena, um pouco mais velha que eu, que Amal me disse ser Hana Kadafi, a filha
adotiva do coronel. Muito tempo depois, fiquei sabendo que sua morte fora
falsamente anunciada, em 1986, depois que os americanos, a mando de Reagan,
bombardearam Trípoli. Mas em Bab al-Azizia não era segredo para ninguém que ela
não só estava viva como era a filha preferida do Guia.
Amal preparou café e ergueu um pequeno telefone celular.
Arregalei os olhos.
– Como
é que você tem esse telefone?
– Minha
querida... Faz mais de dez anos que vivo dentro destes muros.
A cozinha se prolongava numa espécie de cafeteria, que
pouco a pouco foi se enchendo de belas garotas, bem maquiadas, acompanhadas por
dois rapazes que carregavam a insígnia do serviço de protocolo. Falavam alto,
riam.
– Quem são? – perguntei a Amal.
– Convidadas de Muamar. Ele sempre tem convidadas.
Maseu te peço, seja discreta e não faça mais perguntas.
Houve um movimento, e vi as enfermeiras ucranianas, de
blusa branca e jaleco turquesa, indo e voltando. Eu disse a mim mesma que todas
as convidadas certamente seriam submetidas a uma coleta de sangue... Logo Amal
desapareceu e preferi voltar para o meu quarto. O que eu poderia dizer àquelas
garotas, que pareciam tão empolgadas com a ideia de encontrar o Guia? Me ajudem
a sair daqui? Antes mesmo que eu pudesse contar minha história, seria presa e
lançada num buraco.
Eu estava deitada na cama quando Mabruka empurrou a porta
(eu era proibida de fechá-la totalmente).
– Assista os DVDs que lhe entreguei. É uma ordem!
Coloquei um dos discos no aparelho, sem a menor ideia do
que veria. Era a primeira vez que eu tinha contato com sexo. Estava em
território desconhecido, ao mesmo tempo desamparada e completamente angustiada.
Logo peguei no sono. Amal me acordou para tomar café da manhã na cozinha. É
inacreditável como se comia mal na casa do presidente da Líbia! Éramos servidas
em marmitas de metal brancas, e a comida era repugnante. Minha surpresa
provocou um sorriso em Amal, que, quando saímos da cozinha, me convidou para
conhecer seu quarto. E foi ali que Mabruka nos surpreendeu. Ela urrou:
– Cada uma no seu quarto! Amal, você está cansada
de saber.
Vocês não têm direito de receber visita.
Nunca mais faça isso!
No meio da noite, a chefe veio me procurar.
– Seu mestre quer te ver.
Ela abriu a porta do quarto dele e me empurrou em sua
direção. Ele me fez dançar. E depois fumar. Então usou um cartão de visitas
para fazer uma fileira de um pó branco muito fino. Pegou um papel, enrolou e
aspirou pelo nariz.
– Vai, faça como eu. Cheira, vadia! Cheira! Você
vai ver noque vai dar.
Aquilo irritou minha garganta, o nariz, os olhos. Tossi,
tive náuseas.
– É porque você cheirou pouco. – Ele umedeceu um
cigarrocom saliva, esfregou-o na cocaína e fumou lentamente, obrigando-me a
tragar e a soltar a fumaça. Eu não me sentia bem. Estava consciente, mas sem
força. – Agora dança!
Eu sentia a cabeça girar, já não sabia onde estava, tudo se
tornava indistinto, envolto em névoa. Ele se levantou para bater palmas,
marcando o ritmo, e pôs o cigarro na minha boca. Passei mal, e ele me violentou
ferozmente. Mais uma vez. E outra. Ele estava excitado e violento. Parava de
repente, botava os óculos e pegava um livro por alguns minutos, depois voltava,
me mordia, esmagava meus seios e me agarrava mais uma vez antes de ir até o
computador checar seus e-mails ou dizer algo a Mabruka, para depois me penetrar
uma vez mais. Sangrei de novo. Lá pelas cinco da manhã, ele disse:
– Agora sai!
Eu comecei a chorar.
Amal veio sugerir que tomássemos café já no fim da manhã.
Eu não queria sair do quarto, não tinha vontade de ver ninguém, mas ela
insistiu e fomos comer na cafeteria. Era sexta-feira, dia de oração.
Serviram-nos cuscuz. Logo chegou um grupo de rapazes sorridentes e
particularmente à vontade.
– É a novata? – perguntaram a Amal quando me
viram.
Ela assentiu com a cabeça e eles se apresentaram, muito
simpáticos: Jalal, Faisal, Abdelhaim, Ali, Adnane, Hussam. Em seguida, se
dirigiram ao quarto do Guia. Foi nesse dia que tive o segundo choque da minha
vida. E o olhar maculado para sempre. Não conto isso por leviandade. Sou
obrigada a fazê-lo porque estou convencida de que é preciso que entendam por
que aquele monstro desfrutava de total impunidade. Pois as cenas são de tal
maneira cruas, e é tão embaraçoso descrevê-las, e eram tão humilhantes e
vergonhosas para quem as testemunhasse, que chegavam ao ponto de transformar
insidiosamente as testemunhas em cúmplices, já que ninguém assumiria o risco de
narrar as perversões de um homem que tinha direito de vida e morte sobre quem quer
que fosse e maculava todos aqueles que por desventura se aproximassem dele.
Mabruka me chamou:
– Vai se trocar, seu mestre está chamando.
Na linguagem dela, isso significava: “Dispa-se e suba”.
Mais uma vez, ela abriu a porta, e uma cena bizarra surgiu diante de meus
olhos. O Guia, nu, sodomizava o rapaz chamado Ali, enquanto Hussam dançava,
maquiado como mulher, ao som da mesma música lânguida. Eu quis dar meia-volta,
mas Hussam exclamou:
– Mestre, Soraya está aqui! – e fez sinal para que
eu dançassecom ele.
Fiquei paralisada. Então Kadafi me chamou:
– Vem, vadia.
Deixou Ali de lado e me agarrou com fúria. Hussam dançava,
Ali assistia, e, pela segunda vez em alguns dias, eu quis morrer. Ninguém tinha
o direito de fazer aquilo comigo.
Então Mabruka entrou e mandou os dois rapazes saírem e o
mestre parar, pois havia uma emergência. Ele saiu de cima de mim e ordenou:
– Sai!
Corri para o meu quarto sangrando e passei a manhã toda
debaixo do chuveiro. Eu me lavava e chorava. Não conseguia parar. Ele era
louco, todos eram, era uma casa de gente insana, e eu não queria ser como eles.
Queria meus pais, meus irmãos, minha irmã, queria a vida que eu tinha antes. E
isso não era mais possível. Ele havia estragado tudo. Ele era imundo. E aquele
era o presidente do país.
Amal veio me ver e eu supliquei:
– Eu imploro, fale com Mabruka. Eu não posso mais,
querover minha mãe...
Pela primeira vez, eu a vi comovida.
– Ah, meu coraçãozinho! – disse, tomando-me nos
braços. –Sua história é tão parecida com a minha. Eu também fui tirada da
escola. Tinha catorze anos.
Ela já estava com vinte e cinco, e sua vida
lhe dava horror.
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