...— BELLA STEWART —...
O jantar? Um desperdício — como sempre. Cheiro de flor cara misturado com perfume importado, lustres gritando riqueza, garçons se movendo como peças de xadrez e meu pai falando de expansão da empresa como se estivesse planejando conquistar um país. Eu virei taças, sorri demais e senti falta de ar.
Minha mãe me ajeitou na cadeira principal, exatamente à direita do meu pai, que por sua vez fez questão de apresentar Richard Moreau pela quarta vez na vida como se fosse novidade. Richard me devorava com os olhos como quem avalia investimento. Não havia um pingo de disfarce. A cada olhar, eu me encolhia por dentro e reforçava a ideia: não, eu não ia me casar com ele; não, eu não ia me casar com ninguém para salvar planilha de adulto.
— A Stewart Holdings abrirá duas novas frentes no próximo ano — meu pai anunciou, erguendo a taça. — Logística própria e um polo de peças automotivas. Já temos conversas avançadas com o grupo Moreau.
“Polo de peças automotivas.” Anotei mentalmente: mais caminhões, mais galpões, mais homens engravatados explicando como a cidade “só tem a ganhar”.
— Um brinde à parceria — Richard ergueu a taça para mim, não para o meu pai. — E, quem sabe, a outros… acordos. — completou ele.
Minha mãe apertou minha perna por baixo da mesa. Tradução: “Controle o rosto.” Eu controlei. Respirei, sorri do jeito treinado, e respondi com um gelo doce:
— Desejo sorte nos acordos de negócios, senhor Moreau. Os outros não existem.
Ele não se abalou. Um homem que está acostumado a comprar tudo não entende “não” da primeira vez. Às vezes, nem na quinta. Meu pai pigarreou, passou por cima com mais números, gráficos invisíveis, promessas de emprego. Era sempre o mesmo argumento polido.
Quando consegui escapar da roda dos homens que opinam sobre tudo, topei com o senhor Theo Belline encostado discretamente perto de uma janela. Ele é amigo antigo do meu pai; o tipo de homem que carrega gentileza nos ombros largos e nos olhos cansados. Eu sempre gostei dele porque nunca me trata como vitrine.
— Está bonita, menina Bella — disse, com um sorriso que parecia abraço. — Essa cor te deixa luminosa.
— Obrigada, senhor Theo. — Puxei uma conversa só para descansar um pouco da obrigação. — Como o senhor está?
Ele fez um gesto com a mão, aquele “vamos indo” que as pessoas dão quando a resposta verdadeira é muito longa. Com Theo, as coisas sempre foram assim: sinceridade sem espetáculo. Ficamos alguns minutos falando de bobagens — chuva, trânsito, uma obra que não acaba. Até que, ele respirou fundo.
— Sabe… — a voz abaixou um tom. — Hoje faz vinte e oito anos. — ele riu tristemente. — vinte e oito anos, que não sei nada do meu pequeno Estephan.
O salão ficou distante como se alguém tivesse baixado o volume. Eu sabia da história, todos sabiam, mas ninguém tocava nisso em jantares. A esposa dele, Dona Esther, tinha morrido anos depois, e a cidade inventou uma versão simplificada para conseguir conviver com a tragédia: “Ela adoeceu.” Como se isso explicasse tudo.
— Eu sinto muito… — comecei, sem saber se eu deveria recolher a dor ou deixá-la sair.
— Não precisa. — Ele balançou a cabeça, um sorriso triste. — Às vezes falar é o único jeito de as horas andarem. Naquele dia, ela não estava bem desde o parto, ficou diferente. Eu saí para resolver uma bobagem de trabalho, voltei, e ela não estava. Levou o menino. Um recém-nascido. — A mão dele apertou o copo como se estivesse torcendo o tempo. — Quando voltou, horas depois, estava molhada até os ossos, sem meu filho. Eu perguntei, perguntei… e ela dizia coisas que não faziam sentido. Falava de um rio, de barulho de água. Em alguns momentos dizia que ele escorregou, em outros que tinha jogado porque a cabeça dela gritava. Eu vi nos olhos dela que tinha se perdido de si. Ninguém encontrou nada. Nada. Nem um sinal.
Fiquei calada. Não existe frase que costure um buraco desses. Ele respirou, prosseguiu com calma de quem repete a cena para se certificar de que aconteceu de verdade.
— Eu procurei por anos. Fui a delegacia, hospital, igreja, abrigo, cidade vizinha. Publiquei anúncio, paguei recompensa. Andei em margem de rio com lanterna — A voz falhou. — Não achei. E ela foi ficando cada vez mais doente, até que se foi.
Toquei de leve o braço dele.
— Sinto muito, senhor Theo.
— O mundo sente um pouco e segue — ele disse, sem amargura. — Mas eu… eu nunca deixei de procurar. Me chamam de teimoso, de iludido. Dizem que, se ele estivesse vivo, já teria aparecido. Eu ouço e deixo quieto. — Por um segundo, os olhos dele brilhavam de uma fé, esperança — Eu acredito que meu filho está vivo. Em algum lugar. Adulto agora. E um dia… — Ele olhou para a janela, como se ela pudesse abrir para uma resposta — um dia eu ainda vou olhar para alguém e saber.
Não sei explicar o que senti. Um aperto na garganta, um impulso de abraçar aquele homem que carregava vinte e oito anos de ausência como quem leva uma mala que nunca pode largar. Uma parte de mim quis dizer que milagres existem; outra parte ficou muda, com medo de prometer o que não posso cumprir. Apenas concordei com os olhos.
— Se eu puder fazer qualquer coisa… — arrisquei.
— Já está fazendo. — Theo sorriu — Está me ouvindo. As vezes eu penso, que se meu filho estivesse aqui hoje, vocês dois seriam bons amigos, e quem sabe algo a mais. — ele riu, um sorriso bobo, me levando a sorrir também.
Ficamos mais um pouco juntos, conversando sobre outros assuntos. Depois ele foi cumprimentar alguém, e eu fui para a varanda pegar ar.
Meu celular vibrou. Atlas (oficina).
> Atualização: diagnóstico fechado. Vazamento no sistema de arrefecimento + correia pedindo arrego. Amanhã eu troco.
Sorri, lembrando da cara dele quando confessou que tinha inventado as “três horas” só para eu subir logo na caminhonete. Lembrei do riso com dentes perfeitos e da minha raiva meio besta que virou vontade de rir junto.
> Obrigada. E obrigada por não me fazer caminhar três horas de salto.
Ele respondeu rápido:
> Não daria conta.
Revirei os olhos para a tela. A risada escapou, pequena e verdadeira. Guardei o celular antes que alguém me visse sorrindo por motivo próprio.
— Aqui está você. — A voz de Richard veio baixa. — Fugindo de mim?
— Fugindo de dor de cabeça. O senhor costuma causá-la.
Ele deu dois passos para perto. Perfume forte demais. Sorriso treinado demais.
— Até quando vai fingir que não seria um belo arranjo? — perguntou, baixo. — Eu, você. Sua família, a minha. Poderíamos ser eficientes juntos.
— Eu não faço arranjos.
O sorriso dele murchou só um milímetro.
— Seu pai concorda comigo.
— Meu pai concorda com quem assina o cheque certo. — Virei o rosto para ele. — E eu concordo comigo.
Um músculo pulou no maxilar dele. Eu senti o gelo subindo pelo pescoço. Richard inclinou o corpo e sussurrou no meu ouvido — voz de ameaça embrulhada em seda.
— O mundo é dos que decidem, querida. Não dos que fazem birra.
— E das mulheres que sabem dizer “não”. — Endireitei os ombros e dei um passo para trás. — Anote essa novidade.
Ele abriria a boca para responder, mas meu pai apareceu no limite da varanda, aquela cara de “o que você está fazendo”. Richard deu o sorriso público de sempre e se afastou, deixando para trás um gosto metálico de incômodo.
— Bella, precisamos de você na mesa. — Meu pai disse como quem dá ordem para funcionário. — O senhor Belline vai falar da fundação e eu quero que você esteja ao lado.
Fiz o caminho de volta, respirando devagar. Theo falou sobre a Fundação Esther Belline, criada em homenagem à esposa, que hoje mantém abrigos, apoia famílias em sofrimento psíquico, treina profissionais de saúde para lidar com puerpério e depressão pós-parto. Eu escutei com atenção dobrada. Entre as palavras, havia dor verdadeira e tentativa de transformar perda em cuidado. Várias pessoas aplaudiram. Foi o único aplauso que não me pareceu vazio.
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Atualizado até capítulo 73
Comments
Gih
aiiii q ranço desse pai dela credo 🥺
2025-09-12
3
Ana Carolina Figueiredo
Esses pais dela exigem muito dela
2025-09-12
1
Irene Saez Lage
Que horrível homem que diz ser pai vendendo a filha pra fazer negócios próprio que asco de gente que agem assim só tem amor ao dinheiro
2025-09-13
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