Capítulo 1 — O Início do Fim

O som da chaleira apitando ecoou pela cozinha modesta, preenchendo o pequeno cômodo com um vapor morno que embaçava a janela encardida. Mirella desligou o fogo e despejou a água quente na caneca de porcelana já rachada nas bordas. Colocou o sachê de chá dentro, observando a cor se espalhar lentamente, como se aquele instante pudesse durar para sempre.

Era uma manhã qualquer — ou, pelo menos, parecia. O céu estava nublado, os pássaros cantavam preguiçosamente do lado de fora, e a rua da vila ainda permanecia silenciosa. Seu pai adotivo, Orlando, estava sentado à mesa, mergulhado em um jornal velho que já tinha lido mil vezes. Usava os mesmos chinelos gastos, a mesma camisa de flanela e o mesmo silêncio desconfortável de sempre.

Mirella se sentou à frente dele, envolta em uma blusa de moletom larga, com o cabelo preso em um coque bagunçado. Seus olhos observavam cada pequeno gesto do homem que, por tantos anos, ela chamou de pai. Havia algo diferente naquela manhã. Ela sentia — não sabia dizer o quê, nem por quê — mas sentia.

— Vai sair hoje? — ela perguntou, tentando soar casual.

Orlando ergueu os olhos por cima dos óculos. Respirou fundo.

— Tenho umas coisas pra resolver — respondeu de forma vaga, dobrando o jornal com lentidão exagerada.

Era sempre assim. Orlando nunca fora um homem de muitas palavras. Desde que sua saúde começou a declinar, há alguns meses, ele se tornara ainda mais fechado, ainda mais ausente. E, apesar de tudo, Mirella tentava manter a rotina funcionando, mesmo que se sentisse cada vez mais sozinha naquela casa de paredes úmidas e promessas não ditas.

Ela terminou seu chá em silêncio. O dia seguiu arrastado.

Limpou a casa. Lavou as roupas. Dobrou toalhas que já estavam desbotadas. Preparou o almoço — arroz, feijão e ovos fritos. Esperou Orlando chegar até o meio da tarde, quando ele finalmente voltou, com o rosto ainda mais pálido e o andar mais arrastado.

— Você precisa ir ao médico, pai — ela disse, tirando as sacolas das mãos dele.

— Não tenho tempo pra isso, Mirella. E também não tenho dinheiro — retrucou, firme, como quem queria encerrar o assunto.

Mas Mirella insistiu com o olhar. Ela não queria perdê-lo. Ele era tudo o que ela tinha. Ou, ao menos, era o que ela acreditava. Desde criança, ouvira que sua mãe havia morrido no parto, e que Orlando criara Mirella sozinho, com esforço, dignidade e muito sacrifício. Ela se orgulhava disso. Se orgulhava de sua origem humilde, da casa simples, dos valores que aprendera.

Só que tudo estava prestes a mudar.

Naquela noite, Mirella acordou com vozes baixas vindas da sala. Levantou-se descalça, arrastando os pés pelo corredor escuro, guiada apenas pelo som abafado da conversa. Ao espiar pela fresta da porta, viu seu pai sentado diante de dois homens que ela nunca tinha visto antes. Um deles era alto, vestia um paletó escuro e fumava um charuto com o tipo de elegância que destoava de tudo ali. O outro era mais jovem, usava roupas de marca e ostentava um sorriso debochado no rosto.

— Já está decidido, Orlando — o homem do charuto disse. — Ou isso, ou o nome dela vai parar num cartaz de desaparecidos. Você sabe como funciona.

O coração de Mirella disparou. Ela segurou o fôlego, colada na parede, tentando processar o que ouvia.

— Ela não sabe de nada — Orlando murmurou, derrotado. — Nunca contei nada pra ela. E nem quero que saiba. Só… cuidem dela, por favor.

— Vamos cuidar, sim. Ao modo que a gente cuida de tudo que é valioso.

Valioso?

Aquela palavra caiu como um soco no estômago de Mirella. Eles estavam falando dela. E seu pai… seu pai estava concordando. Ela recuou, com as pernas trêmulas, o coração descompassado e a mente em choque.

Voltou para o quarto e se jogou na cama, fingindo dormir quando ouviu a porta ser aberta e fechada minutos depois. As lágrimas vieram silenciosas, pesadas. Naquele momento, Mirella sentiu que algo em sua vida havia quebrado — e não havia como consertar.

No dia seguinte, Orlando não falou nada. Tomaram café da manhã em silêncio, como sempre. Mas Mirella via agora com outros olhos: a palidez no rosto dele, o tremor das mãos, o olhar de culpa. Ele sabia que estava prestes a perdê-la. Não por doença. Mas por escolha.

Naquela mesma tarde, o carro preto parou em frente à casa.

Orlando se levantou com dificuldade, caminhou até o quarto dela e bateu duas vezes antes de entrar.

— Vista aquela roupa bonita que você ganhou da dona Clarice no seu aniversário. Eles vão te levar para um lugar melhor, Mirella. Um lugar onde você vai ter tudo do bom e do melhor.

Ela o encarou. Não disse uma palavra. Apenas sentiu as lágrimas brotarem de novo, e engoliu o grito que queria soltar.

Ele não teve coragem de olhar nos olhos dela.

Quando ela saiu da casa, o céu começava a escurecer. O vento estava frio. O motorista abriu a porta do carro sem dizer nada, e Mirella entrou.

Não sabia para onde estava indo. Não sabia por quê. Mas naquele instante, entendeu que sua vida — aquela que conhecia, aquela em que acreditava — tinha acabado.

E o jogo… o jogo estava apenas começando.

Mais populares

Comments

Dulce Rodrigues

Dulce Rodrigues

Sempre mentiras ocultas. Um passado obscuro e um futuro incerto.! Ó céus!!
/Chuckle/

2025-09-08

0

Ver todos
Capítulos
1 Prefácio
2 Capítulo 1 — O Início do Fim
3 Capítulo 2 — O Preço da Promessa
4 Capítulo 3 — A Primeira Jogada
5 Capítulo 4 — Bem-vinda ao Jogo
6 Capítulo 5 — Regras Invisíveis
7 Capítulo 6 — Testando as Grades
8 Capítulo 7 — O Jogador Também Sangra
9 Capítulo 8 — Aquilo Que Está Escondido
10 Capítulo 9 — Entre a Fúria e o Fio da Pele
11 Capítulo 10 — Entre o Instinto e a Sombra
12 Capítulo 11 — A Primeira Explosão
13 Capítulo 12 — As Sombras Também Têm Voz
14 Capítulo 13 — O Invasor com Nome Antigo
15 Capítulo 14 — O Preço da Verdade
16 Capítulo 15 — O Caminho Sozinho
17 Capítulo 16 — As Vozes Que Não Foram Ouvidas
18 Capítulo 17 — O Homem Que Nunca Morreu
19 Capítulo 18 — Guerra Silenciosa
20 Capítulo 19 — Entre Leões e Raposas
21 Capítulo 20 — Uma Isca no Tabuleiro
22 Capítulo 21 — A Escolha Que Não Era Dela
23 Capítulo 22 — A Sombra Que Caminha ao Lado
24 Capítulo 23 — Inimigo do Meu Inimigo
25 Capítulo 24 — Verdade em Rede Nacional
26 Capítulo 25 — A Caçada Começou
27 Capítulo 26 — A Jogada Mais Perigosa
28 Capítulo 27 — Corações em Guerra
29 Capítulo 28 — Quando os Castelos Desmoronam
30 Capítulo 29 — Voz Queima Mais Que Bala
31 Capítulo 30 — Sozinha Entre Multidões
32 Capítulo 31 — Entre a Verdade e o Perdão
33 Capítulo 32 — A Guerra Também É Sobre Memória
34 Capítulo 33 — O Começo do Depois
35 Capítulo 34 — Manual do Depois
36 Capítulo 35 — Vozes no Confronto
37 Capítulo 36 — Linhas de Fogo
38 Capítulo 37 — O nome das mortas
39 Capítulo 38 — Luz que não se apaga
40 Capítulo 39 — Delação ou Silêncio
41 Capítulo 40 — O Peso do Farol
42 Capítulo 41 — Onde o Mar Morre e a Cidade Começa
43 Capítulo 42 — O Contra-ataque
44 Capítulo 43 — O Dia em Que a Cidade Parou
45 Capítulo 44 — A Voz Que Não Pode Ser Silenciada
46 Capítulo 45 — A Linha Entre Verdade e Mentira
47 Capítulo 46 — As Peças Ocultas
48 Capítulo 47 — O Último
49 Capítulo 48 — O Tabuleiro em Chamas
50 Capítulo 49 — Feridas Que Não Cicatrizam
51 Capítulo 50 — O Último Jogador no Tabuleiro
52 Capítulo 51 — A Verdade Entre Nós
53 Capítulo 52 — O Último Tabuleiro
54 Capítulo 53 — Ecos do Passado
55 Capítulo 54 — A Verdade Dentro do Envelope
56 Capítulo 55 — O Peso da Confissão
57 Capítulo 56 — Voz Que Rompe o Silêncio
58 Capítulo 57 — O Tabuleiro Final
59 Capítulo 58 — O Julgamento dos Reis
60 Capítulo 59 — Vozes Fora do Tribunal
61 Capítulo 60 — O Peso da Verdade
62 Capítulo 61 — A Última Carta no Jogo
63 Capítulo 62 — A Criança no Tabuleiro
64 Capítulo 63 — O Sangue que Retorna
65 Capítulo 64 — A Ultima Jogada
66 Capítulo 65 — O Cerco Final
67 Capítulo 66 — O Tabuleiro Revelado
68 Capítulo 67 — Armadilhas no Silêncio
69 Capítulo 68 — O Último Lance
70 Epílogo — Depois do Jogo
Capítulos

Atualizado até capítulo 70

1
Prefácio
2
Capítulo 1 — O Início do Fim
3
Capítulo 2 — O Preço da Promessa
4
Capítulo 3 — A Primeira Jogada
5
Capítulo 4 — Bem-vinda ao Jogo
6
Capítulo 5 — Regras Invisíveis
7
Capítulo 6 — Testando as Grades
8
Capítulo 7 — O Jogador Também Sangra
9
Capítulo 8 — Aquilo Que Está Escondido
10
Capítulo 9 — Entre a Fúria e o Fio da Pele
11
Capítulo 10 — Entre o Instinto e a Sombra
12
Capítulo 11 — A Primeira Explosão
13
Capítulo 12 — As Sombras Também Têm Voz
14
Capítulo 13 — O Invasor com Nome Antigo
15
Capítulo 14 — O Preço da Verdade
16
Capítulo 15 — O Caminho Sozinho
17
Capítulo 16 — As Vozes Que Não Foram Ouvidas
18
Capítulo 17 — O Homem Que Nunca Morreu
19
Capítulo 18 — Guerra Silenciosa
20
Capítulo 19 — Entre Leões e Raposas
21
Capítulo 20 — Uma Isca no Tabuleiro
22
Capítulo 21 — A Escolha Que Não Era Dela
23
Capítulo 22 — A Sombra Que Caminha ao Lado
24
Capítulo 23 — Inimigo do Meu Inimigo
25
Capítulo 24 — Verdade em Rede Nacional
26
Capítulo 25 — A Caçada Começou
27
Capítulo 26 — A Jogada Mais Perigosa
28
Capítulo 27 — Corações em Guerra
29
Capítulo 28 — Quando os Castelos Desmoronam
30
Capítulo 29 — Voz Queima Mais Que Bala
31
Capítulo 30 — Sozinha Entre Multidões
32
Capítulo 31 — Entre a Verdade e o Perdão
33
Capítulo 32 — A Guerra Também É Sobre Memória
34
Capítulo 33 — O Começo do Depois
35
Capítulo 34 — Manual do Depois
36
Capítulo 35 — Vozes no Confronto
37
Capítulo 36 — Linhas de Fogo
38
Capítulo 37 — O nome das mortas
39
Capítulo 38 — Luz que não se apaga
40
Capítulo 39 — Delação ou Silêncio
41
Capítulo 40 — O Peso do Farol
42
Capítulo 41 — Onde o Mar Morre e a Cidade Começa
43
Capítulo 42 — O Contra-ataque
44
Capítulo 43 — O Dia em Que a Cidade Parou
45
Capítulo 44 — A Voz Que Não Pode Ser Silenciada
46
Capítulo 45 — A Linha Entre Verdade e Mentira
47
Capítulo 46 — As Peças Ocultas
48
Capítulo 47 — O Último
49
Capítulo 48 — O Tabuleiro em Chamas
50
Capítulo 49 — Feridas Que Não Cicatrizam
51
Capítulo 50 — O Último Jogador no Tabuleiro
52
Capítulo 51 — A Verdade Entre Nós
53
Capítulo 52 — O Último Tabuleiro
54
Capítulo 53 — Ecos do Passado
55
Capítulo 54 — A Verdade Dentro do Envelope
56
Capítulo 55 — O Peso da Confissão
57
Capítulo 56 — Voz Que Rompe o Silêncio
58
Capítulo 57 — O Tabuleiro Final
59
Capítulo 58 — O Julgamento dos Reis
60
Capítulo 59 — Vozes Fora do Tribunal
61
Capítulo 60 — O Peso da Verdade
62
Capítulo 61 — A Última Carta no Jogo
63
Capítulo 62 — A Criança no Tabuleiro
64
Capítulo 63 — O Sangue que Retorna
65
Capítulo 64 — A Ultima Jogada
66
Capítulo 65 — O Cerco Final
67
Capítulo 66 — O Tabuleiro Revelado
68
Capítulo 67 — Armadilhas no Silêncio
69
Capítulo 68 — O Último Lance
70
Epílogo — Depois do Jogo

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!