O Inferno é silencioso. Sempre foi. Labaredas dançam em passos previsíveis, correntes se estendem em ritmos que ninguém mais consegue notar. Eu me movo entre tudo isso como parte do próprio equilíbrio.
Passei séculos procurando algo que pudesse perturbar minha essência, algo que pudesse quebrar o equilíbrio que eu, inevitavelmente, mantenho. Mas nunca encontrei. Nada despertava a sensação que há milênios não sentia: dor. Não física, não mortal. Um aviso do universo.
Eu pensei que não aconteceria de novo. Que aquela sensação era uma ocorrência única, ligada a eras passadas que o tempo havia apagado. Mas estava errado.
O tempo passou. O mundo humano continuou sua rotina previsível, sem perceber as ondas que atravessam dimensões. E então, após dezoito anos de silêncio… senti.
Uma pontada atravessou minha essência. Aguda. Estranha. Queimando de uma forma que eu nunca havia sentido. Uma dor que era aviso, alerta, ruptura. Algo fora do lugar. Algo crescendo silenciosamente no mundo dos mortais.
Minha primeira reação foi ignorar. Sempre tento ignorar. Mas meu corpo… minha essência… não permitiu. Aquela energia não podia ser ignorada.
— Não… — murmurei, cruzando os braços, enquanto as chamas ao redor se agitavam sutilmente. — Não é possível… Não deveria haver mais nada…
Mas havia.
A dor não me mostrava o motivo. Não me dizia onde ou quem. Apenas gritava que algo estava acontecendo, algo que quebraria o equilíbrio se ninguém interviesse. Algo tão potente que atravessava dimensões e me alcançava aqui, no Inferno, intacto e impossível de esconder.
Decidi subir. Subir ao mundo humano. Precisava investigar. Precisava sentir a origem. Precisava ver o que havia causado essa perturbação que, de alguma forma, atravessara séculos de silêncio e milênios de ordem.
O mundo humano me recebeu com cores fracas demais e barulhos demais, mas eu não me importei. Nada era tão importante quanto a sensação que pulsava em minha essência.
E então eu a encontrei.
Ela não sabia nada. Nunca havia suspeitado de seu poder. Nunca sentira nada além do calor humano comum. Mas estava ali, andando distraída, carregando livros, imersa em sua vida humana de dezoito anos, totalmente inconsciente da energia que emanava.
O encontro não foi planejado. Não houve aviso, não houve drama, apenas um esbarrão casual. Ela bateu em mim sem perceber. Um choque mínimo de contato físico, e, de repente, a sensação que eu sentira no Inferno voltou com intensidade multiplicada.
O calor queimou minha essência de forma diferente, mas fascinante. Era energia viva, pura, indomável. Um alerta que eu não conseguia ignorar. Pela primeira vez, não havia frieza em minha curiosidade — apenas fascínio e sede de entender o que acontecia.
— Interessante — murmurei, meu olhar percorrendo cada detalhe dela. — Muito, muito interessante…
Ela recuou, os olhos enormes de surpresa, ainda segurando os livros.
— Oh! Desculpe… eu não vi você — disse, completamente confusa, olhando para mim como se eu fosse uma loucura ambulante.
— Não, você não viu — disse eu, mantendo os braços cruzados, a voz baixa, fria, mas com um toque de curiosidade afiada. — Mas de alguma forma, conseguiu me atingir. E isso… — meus olhos se estreitaram — …isso é impossível de ignorar.
Ela piscou, incrédula.
— Me atingir? Eu… não sei do que você está falando. — Ela recuou mais um passo. — Você está louco?
Sorri de lado, mas não com gentileza. Um sorriso que mistura sarcasmo, surpresa e fascínio.
— Talvez eu seja. Ou talvez você seja. Porque algo dentro de você acabou de… mexer com o mundo. E eu senti.
Ela franziu o cenho, completamente perdida.
— O que você quer dizer com isso? Eu não sei do que você está falando! — disse, tentando manter distância.
— Não precisa saber — murmurei, os olhos ainda fixos nela. — Por enquanto. Mas saiba disso: algo dentro de você mudou tudo. E eu… nunca senti nada assim antes.
Ela piscou novamente, sem entender nada. — Você é louco. Definitivamente louco.
E eu percebi, pela primeira vez desde que subi ao mundo humano, que não precisava de respostas imediatas. Apenas precisava observar. Porque aquele toque, aquele esbarrão, revelou mais do que qualquer explicação poderia.
O poder dela não era apenas um alerta. Era vivo. Pulsava, queimava e chamava atenção de uma maneira que me deixou curioso como nunca antes.
E, pela primeira vez em milênios, algo humano conseguiu despertar meu interesse sem que eu tivesse que buscar, sem que eu soubesse o nome, sem que eu tivesse qualquer pista do que se tratava.
E isso… era perigoso.
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Atualizado até capítulo 65
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