No Tribunal do Desejo
A cidade parecia a mesma. As luzes frias dos prédios de advocacia cortavam a escuridão da noite como lâminas, refletindo no asfalto molhado pela chuva recente. Carmilla Castilho ajustou os óculos escuros — mesmo que a noite não exigisse — e respirou fundo o cheiro familiar: poder, arrogância, decadência. Ah, como sentiu falta disso.
O salto escarlate de suas scarpins ecoava firme pelo hall do aeroporto, cada passo medido, cada movimento calculado. Uma deusa retornando ao seu império. Até que uma voz interrompeu sua trilha sonora mental:
— Veja só quem decidiu descer do Olimpo. — A voz masculina soou com deboche, carregada de um humor insolente que Carmilla conhecia bem.
Ela ergueu lentamente os olhos e encontrou o rosto que menos queria ver no momento: Victor Castilho, seu irmão mais velho, sorrindo como se tivesse acabado de ganhar na loteria com a desgraça alheia.
— Victor. — A entonação dela era um misto de tédio e veneno. — Que surpresa desagradável.
Ele abriu os braços, teatral.
— Cinco anos sem dar notícias e esse é o seu jeito de dizer ‘oi’? Estava esperando fogos de artifício, no mínimo.
Carmilla continuou andando, ignorando o gesto exagerado, os saltos soando como marteladas no ego dele.
— Cinco anos sem eu ouvir sua voz já foi o bastante para minha sanidade, Victor. Mas, aparentemente, nem tudo que desejamos acontece.
Ele riu, acompanhando os passos dela como uma sombra inconveniente.
— Você continua a mesma, sabia? Sempre pronta para dar uma patada. Nem parece que saiu de Paris… Ah, desculpe, Milão, não é? A dama das leis conquistando o mundo.
Ela parou, só para ajustar a alça da bolsa no ombro, mas o olhar que lançou a ele era uma lâmina afiada.
— Você fala como se tivesse importância na minha vida. Não tem. Nunca teve.
Victor sorriu de lado, inclinando-se como quem observa uma obra de arte perigosa.
— Ah, mana… E eu achando que tinha saudade de mim.
Ela inclinou a cabeça, os lábios se curvando num sorriso irônico.
— Saudade? Não me faça rir. Nem a saudade tem estômago para tanto mau gosto.
O som do salto voltou a ecoar, anunciando que ela tinha pressa, ou talvez apenas desprezo. Ele deu alguns passos para alcançá-la, ainda com aquele maldito sorriso.
— E então? Voltou para quê? Para derrubar mais alguém? Para roubar outro trono?
Carmilla se virou lentamente, encarando-o como um predador olha para a presa antes do bote.
— Voltei para tomar o que é meu. E se alguém estiver no meu caminho, que Deus tenha piedade… porque eu não terei.
Victor arqueou as sobrancelhas, um arrepio dançando na espinha. Ele sabia: quando Carmilla Castilho falava assim, alguém sangrava — metafórica ou literalmente.
E, no fundo, ele adorava assistir.
...[...]...
...Um Lar que Nunca Foi Casa...
O carro preto avançava pelas ruas iluminadas como uma fera silenciosa. Carmilla, sentada no banco traseiro, observava a cidade com a expressão gélida de quem não pertence mais a lugar nenhum. Victor, ao volante, cantarolava baixinho uma música irritante, apenas para quebrar o silêncio — ou para provocar.
— Sabia que mamãe surtou quando soube que você vinha? — comentou ele, com aquele tom que misturava ironia e prazer em incomodar. — Ela está preparando um banquete digno da realeza. Acho que você vai gostar.
Carmilla nem desviou os olhos da janela.
— Eu não vim para ser celebridade em jantar de família.
Victor sorriu, como quem sabia mais do que devia.
— Claro que não. Você nunca fez nada por eles, não é? Nem antes… nem agora.
Ela virou o rosto lentamente, os olhos faiscando por trás da sombra dos cílios.
— Cuidado com a língua, Victor. Ou posso arrancá-la da próxima vez que você ousar se achar interessante.
Ele riu alto, um som insolente que preencheu o carro até o portão de ferro negro se abrir, revelando a imponente mansão Castilho. A casa parecia um palácio antigo, com suas colunas de mármore e janelas imensas iluminadas pela luz dourada que escapava para a noite. Um lugar belo — e sufocante.
Quando Carmilla desceu, os saltos tocaram o chão com um som seco, contrastando com o farfalhar das árvores no jardim. As portas duplas se abriram, e lá estavam eles: Clara, com um sorriso cálido, e Antônio, com o mesmo olhar severo que Carmilla lembrava desde a infância.
— Minha filha! — Clara correu até ela, envolveu-a num abraço apertado, perfumado com lavanda e nostalgia. — Como senti sua falta…
Carmilla permitiu o contato, mas sem calor. Seus braços não se ergueram para retribuir. Apenas um toque frio nas costas da mãe, antes que se afastasse com um sorriso ensaiado.
— Mamãe. Sempre tão… dramática.
Clara não percebeu — ou fingiu não perceber — a ironia. Já Antônio, parado alguns passos atrás, percebeu cada detalhe. Seus olhos de aço analisavam a filha como se ela fosse uma estranha que ousava invadir território sagrado.
— Carmilla. — A voz dele soou grave, cortante, como a lâmina de um veredito. — Cinco anos sem aparecer… e finalmente decidiu voltar.
Ela ergueu o queixo, um sorriso perigoso curvando os lábios pintados de vermelho.
— Não voltei por você, papai. Nem por essa casa.
Um silêncio espesso tomou conta do hall. Clara, aflita, tentou disfarçar.
— Ora, deixem isso para depois. Venham, a mesa está posta! Victor, ajude sua irmã a se acomodar.
Victor fez uma mesura zombeteira.
— Com prazer.
Carmilla caminhou pelo hall de mármore, cada passo ecoando como um lembrete: ela nunca pertenceu àquela casa. As paredes cobertas de retratos familiares pareciam julgá-la, mas ela só via uma coisa: o poder que sempre lhe foi negado.
Enquanto atravessava o corredor, sentiu o peso do olhar do pai. Um olhar que dizia tudo:
"Você não é bem-vinda aqui."
E Carmilla sorriu para si mesma.
"Ótimo. Nunca quis ser."
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Atualizado até capítulo 65
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