Todos os dias, ao nascer do sol, é o mesmo ritual: eu sentada na varanda, chá nas mãos, e o mundo acordando diante de mim.
O vapor sobe da xícara, mas o chá sempre esfria — culpa dos pensamentos que me sequestram.
Saio do transe quando sinto os braços de JP me envolverem por trás.
— Bom dia, feia. — ele provoca.
Reviro os olhos.
— Bom dia, coisa chata. Achei que ia acordar mais tarde.
— Essa era a intenção… mas tô ansioso pelo evento de hoje.
— Haha, é só uma festa, princeso.
— É aniversário da Katherine. — ele fala, como quem solta sem querer.
Franzo a testa e deixo um sorriso escapar.
— Você gosta da irmã do Aiden?
— Claro que não!!! — responde rápido demais.
O rubor no rosto dele é a prova de que mordeu a língua. Rio, deixando-o emburrado.
— Vamos, temos que nos aprontar para deixar tudo pronto antes de sair.
— Ímpar ou par pra ver quem fica com a plantação?
— Bora. Eu sou ímpar.
— Par.
No três, JP abre seis dedos. Eu, dez.
— Se fudeu, ganhei. — ele comemora.
Respiro indignada. Odeio perder.
No banheiro, encaro meu reflexo. A mulher que me olha de volta não é mais a menina de antes.
— Você cresceu tanto… — sussurro, quase sem perceber.
Depois da higiene, pego o celular e sigo para o celeiro. Conferir tudo é meu hábito, quase um vício. Animais, rações, produtos. Passo mais tempo que o normal, e ao ver os cavalos correndo pelo campo, uma lembrança me invade.
💬💬💬💬
Eu tinha nove anos quando vi Dominic e Aiden pela primeira vez. Francisco os ensinava a montar. Eu, na minha égua, cruzei o campo livre, rindo sozinha… até sentir aquele impacto silencioso. Não sabia o que era, mas Aiden me prendeu de um jeito estranho.
Naquela noite, Alina sentou comigo.
— Acha ele bonito? O Aiden? — perguntou, com um olhar divertido.
Fiquei muda, envergonhada.
— Tudo bem achar bonito, mas você sabe que é só uma criança, certo? — assenti.
— Não cresça depressa, minha menina. Aproveite cada fase. Você vai ter todo o tempo do mundo para experiências incríveis.
💬💬💬💬
O conselho dela ficou comigo. Eu soube esperar. Nunca mais senti algo parecido… até ontem.
Porque ontem, no estábulo, Aiden não só me olhou — ele me provocou. E o pior… ele sabia que eu estava no campo.
Há quanto tempo?
O que mais ele sabe?
E porque ele brinca com meus sentimentos?
Respiro fundo e afasto a lembrança. Hoje é dia de trabalho pesado. Entro na baia da Luli, minha égua prenha. Ela levanta a cabeça, orelhas atentas, e me recebe com um relincho suave. Sorrio sozinha.
— Ei, minha menina… — passo a mão pelo pescoço dela, sentindo o calor e o cheiro familiar. — Você sabe que é minha terapia, né?
Enquanto escovo o pelo, vou falando baixo, como se ela entendesse cada palavra.
— Tem tanta coisa acontecendo, Luli… Eu queria poder sumir daqui, mas ao mesmo tempo… aqui é minha casa. — minhas mãos seguem o ritmo calmo, desfazendo nós na crina. — Só que voltar também significa encarar tudo. As pessoas, as datas, as festas…
A pressão no peito começa a subir. O ar fica curto. Fecho os olhos e apoio a testa no pescoço dela.
— Respira, Helene… respira… — digo a mim mesma, ouvindo o som da respiração dela, que é lenta e constante. Aos poucos, minha ansiedade perde força, como se o mundo voltasse para o lugar.
JP aparece na porta, apoiado no batente.
— Se precisar, eu posso inventar uma desculpa pra você não ir.
— Não… — levanto a cabeça, enxugando discretamente os olhos. — É só uma festa.
— É o que você sempre diz antes de travar no canto da sala. — ele brinca, mas o olhar é de preocupação.
Trabalhamos lado a lado pelo resto da manhã. Ele cuidando da plantação, eu conferindo cada baia, cada cavalo, separando as rações. O sol vai subindo, e o cheiro do campo se mistura ao de uvas maduras da vinícola ao lado.
Quando a hora de se arrumar chega, sinto aquele aperto outra vez. Festa significa gente demais, perguntas demais, abraços que eu não quero dar e rever algumas pessoas da faculdade. Isso significa encarar olhares que lembram quem eu fui, quem esperam que eu seja e pela olhares de quem lembra da humilhação que passei.
Volto para casa, cansada, e encontro JP andando de um lado para o outro, quase cavando um buraco no chão.
— Aí está você! Graças a Deus.
— Nem demorei tanto.
— Tá de sacanagem? Você demorou demais. Quase fui atrás.
— Para de drama, já tô aqui. — rio. — Tomou banho?
— Já. Agora vai logo se aprontar, mulher.
Ele me empurra escada acima. Mas mesmo com o corpo em movimento, minha cabeça está em outro lugar…
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Atualizado até capítulo 30
Comments
Emma
Que história incrível! 😲
2025-08-10
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