O primeiro mês de sessões entre April e Aníbal foi exaustivo. Desde o primeiro dia, ele deixou claro que não queria estar ali, e que a presença dela pra ele era pior do que está em uma selva fugindo de um animal feroz. Ele sentava de braços cruzados, o cenho franzido, e respondia às perguntas dela com o mesmo entusiasmo de alguém sendo interrogado pela polícia.
April: Qual o seu nível de dor hoje, Aníbal?
Aníbal: Você quer saber da dor física ou do desprazer de estar aqui ouvindo sua voz toda manhã?
April não recuava. Mantinha a postura firme, o tom de voz calmo, mas por dentro contava até cem para não perder a paciência. Ela já tinha lidado com pacientes difíceis, mas Aníbal era de outro nível: cínico, sarcástico e pessimista.
Aníbal: Você fez curso de terapia ou comprou esse diploma em algum site pirata?
April: Eu fiz faculdade. Já ouviu falar? Tem gente que frequenta.
As sessões viraram um campo de batalha silencioso, onde as armas eram as palavras afiadas e os silêncios carregados. Ele implicava com tudo: com o jeito dela sentar, com os exercícios propostos, até com a caneta que ela usava para anotar as evoluções.
Mas, curiosamente, Aníbal nunca atrasou a uma sessão sequer. Estava sempre lá, pontualmente, mesmo que para reclamar. E April notava, embora nunca dissesse em voz alta que, entre uma provocação e outra, ele prestava atenção sim.
A última semana foi a pior de todas. Na segunda-feira, Aníbal passou a sessão toda silencioso, mas com olhares que diziam tudo, cada vez que April o corrigia, ele endurecia a mandíbula e desviava o rosto, como se obedecer fosse uma humilhação pessoal.
Na terça, ele explodiu: acusou April de exagerar nos exercícios só para “se vingar” das reclamações dele. Jana precisou intervir para que ele não encerrasse a sessão antes da hora.
Na quarta, April perdeu a paciência: disse em voz alta que, se ele não queria colaborar, podia avisar logo, porque ela não tinha tempo a perder com quem prefere reclamar do que se dedicar.
Quinta e sexta foram uma guerra. Ele reclamava de tudo e todos, implicava com April a cada segundo, como uma criança birrenta. April, por sua vez, mantinha um tom firme, quase frio, cumprindo cada passo do tratamento sem qualquer tentativa de suavizar o clima.
Agora, era sábado de manhã. April marchava para uma batalha. A sala estava em silêncio, exceto pelo som da cadeira de rodas de Aníbal raspando levemente no chão enquanto ele girava de um lado para o outro, impaciente.Ele a esperava de braços cruzados, a testa franzida e o humor mais sombrio do que nunca.
April: Bom dia.
Aníbal: Já achei esse “bom” meio otimista demais.
April suspirou, mas conteve a resposta que queimava na ponta da língua. Deixou a bolsa de lado, foi até a mesa onde estavam os registros e falou sem olhar para ele.
April: Vamos direto ao ponto, então.
Folheou a prancheta com calma, mesmo sabendo que ele odiava o silêncio. Cada número ali, o aumento de resistência, a melhora na ativação muscular, provava que o tratamento funcionava, mas Aníbal nunca admitia.
April: Hoje vamos repetir o treino de ponte pélvica com estímulo posterior, alongamento de quadris e resistência de tronco.
E, Aníbal, nada de fingir dor. Depois de uma semana com você, eu já diferencio quando é esforço e quando é pura implicância.
Aníbal: Você devia agradecer por esse charme todo. Torna o seu dia mais interessante.
April: Se eu quisesse meu dia interessante, eu arrumava outro emprego ou então outro paciente.
Agora respira fundo e se concentra.
Ela se ajoelhou ao lado dele, posicionando os eletrodos nos pontos corretos. Os dedos de April se moviam com segurança, mas seu semblante estava tenso. Era uma mulher cansada, lidando com alguém que parecia testar cada limite dela.
Aníbal: Isso é desumano. Aposto que você se diverte me torturando. — Grunhiu de dor.
April: É um prazer, de fato. Mas o maior é ver você conseguir ficar um segundo a mais em cada exercício. Isso me diverte mais do que suas piadinhas sem graça.
Ele não respondeu, apenas fechou os olhos enquanto ela conduzia os exercícios passivos e a eletroestimulação.
April: Vamos, mais uma vez. Você já melhorou muito desde o início da semana.
Aníbal: Melhorou pra você. Pra mim, só dor e humilhação.
April: Reclama depois. Agora foco.
CASA DE APRIL
Susana terminava de organizar os remédios quando franziu a testa ao perceber um frasco vazio. Aproximou-se de Clara, que estava na cozinha terminando o arroz.
Susana: Clara, pode cuidar da Marisa um minutinho? Preciso ir até a farmácia comprar os remédios que acabaram.
Clara: Claro, sem problemas.
Vou só abaixar o fogo.
A enfermeira saiu apressada. Clara enxugou as mãos e foi até a sala, onde a senhora estava sentada na poltrona, com Kally brincando em um tapete ao lado. Ela se sentou no sofá, vigiando de longe, mas, depois de alguns minutos, o cheiro do arroz queimando a fez levantar.
Clara: Ai, meu Deus, o arroz!
Ela correu para a cozinha, desligou o fogo e, quando voltou para a sala... a poltrona estava vazia. Kally e Marisa não estavam mais lá.
Clara: Dona Marisa?
Olhou ao redor, passou para o corredor, foi ao quarto. Nada.
Clara: Kally? Kally, meu amor, onde você tá?
Correu até a porta da frente e a encontrou entreaberta. O coração acelerou. O desespero tomou conta do rosto dela.
Clara: Não… não… meu Deus!
Ela saiu pela rua, gritando os nomes, rodando os olhos pelo bairro. Nada. Nem sinal da idosa, nem da bebê. Clara corria pela calçada do bairro, o rosto suado, a respiração falha. Os olhos buscavam desesperadamente qualquer sinal da senhora ou da bebê. Virando a esquina, deu de cara com Susana que voltava da farmácia com uma sacola de medicamentos.
Clara: Dona Marisa e a Kally... elas sumiram!
Susana: Como assim? Você tá brincando?
Clara: A porta estava aberta... eu só fui ver o arroz, quando voltei... elas tinham sumido!
As sacolas quase caíram das mãos de Susana.
Susana: Não! Não pode ser... A Marisa mal lembra quem é e com a bebê?
Sem perder tempo, ambas começaram a correr pelas ruas do bairro. Gritavam os nomes, perguntavam para vizinhos, rodavam pelas esquinas. Nada. Nenhum sinal das duas. A cada minuto, o desespero aumentava.
Susana: A gente precisa ligar pra April...
Clara: Mas e se ela estiver com paciente?
Susana: Não importa, Clara! É a filha e a mãe dela!
Com mãos trêmulas, Susana discou o número.
CASA DE ANÍBAL
Aníbal já estava impaciente, observando April ajustar os elásticos para o próximo exercício. O pai dele, sentado no canto, lia o jornal enquanto Jana observava o progresso silenciosamente.
O celular de April vibrou em cima da bancada. Ela olhou rapidamente e viu o nome de Susana. Atendeu de imediato, estranhando a ligação naquele horário.
April: Eu preciso atender, um momento...
📱Susi... aconteceu algo?
📱Susana: April... eu... eu não sei como te dar essa notícia?
📱April: Aconteceu alguma coisa com a minha mãe?
📱Susana: É que... eu tive que ir na farmácia buscar uns remédios e deixei a sua mãe com a Clara.
E por um momento de distração a Kally e a sua mãe sumiram. A gente já procurou por toda a rua. Nada! — Se desesperou.
O mundo de April parou. O sangue deixou seu rosto, o coração pareceu parar por um segundo.
📱April: O... quê?
April: Elas sumiram, April. A gente tá procurando, mas precisamos de você!
April desligou tremendo. Nem pensou em esconder o desespero no rosto. Seus olhos se encheram de lágrimas instantaneamente. Olhou para os três no ambiente e respirou fundo.
April: Eu... preciso sair agora. É urgente.
Aníbal: Não é assim que funciona. Você é paga pra ficar aqui comigo fazendo os exercícios até dar o seu horário.
April: Por favor... é um caso pessoal... muito sério...
Eu jamais iria pedir pra sair por uma bobagem.
Aníbal: Não me importa.
Eu tô aqui, sou seu trabalho.
As palavras cortaram como navalha. April se calou por um instante, paralisada. O rosto já tomado pelas lágrimas. Jana, que observava a cena em silêncio, se aproximou, percebendo a gravidade da situação.
Jana: O que houve, April?
Ela respirou fundo e desabafou, segurando o choro com dificuldade:
April: Minha filha... e minha mãe... elas sumiram. Abriram a porta de casa e... desapareceram. Minha mãe tem Alzheimer, e minha bebê... ela só tem sete meses...
Jana não pensou duas vezes. Pegou a bolsa de April da cadeira.
Jana: Meu Deus! Vá, querida! Sua família precisa de você.
April: Eu... obrigada...
Ela saiu correndo, quase tropeçando, os olhos turvos de desespero. Aníbal ficou em silêncio por alguns segundos, sem coragem de olhar para ninguém.
Antônio: Você foi longe demais! — Se dirigiu a Aníbal.
April, espera! Vamos com você! — Gritou, pegando a chave do carro.
Jana: Uma mulher desesperada... com a filha desaparecida... e você pensou no seu ego.
Aníbal não respondeu. Apenas encarou o chão, sentindo, talvez pela primeira vez em muito tempo, o peso de ter errado feio. A culpa começou a morder devagar as beiradas da sua consciência.
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Comments
MARIA RITA ARAUJO
ai autora, assim vc nos mata do coração com essa situação da pobre April 🙆🏻♀️ estou torcendo para que ela esteja em alguma praça com a criança ou nem ter saído de casa 🤦🏻♀️
2025-08-03
3
Celi
será só um capítulo?
2025-08-03
2
Claudia Inês Schmidt
Espero ué aparece um pouco de humanidade nesse cara
2025-09-08
0