Capítulo 4 — Pensamentos Silenciosos e Dias Que Começam
O jantar havia terminado há mais de uma hora. Stefy já tinha ido embora, rindo sozinha de suas teorias não ditas. Merliah estava no quarto, ouvindo música e digitando freneticamente no celular com os fones no ouvido. E Clara... Clara lavava a última taça na pia, com os pensamentos a mil por hora.
A água morna escorria pelos dedos enquanto a mente dela voltava, teimosa, para os olhos escuros de Lívia. Para o jeito como ela respondia com calma, mesmo sendo testada o tempo todo. Para a ousadia contida no comentário daquela tarde: "Primeira vez que vejo você sorrir em dois dias."
Por que você percebeu isso? — Clara se perguntou, sozinha, deixando a taça escorregar lentamente das mãos até a toalha de prato.
Foi para o quarto sem dizer mais nada, fechando a porta devagar, como quem fecha o mundo lá fora.
Sentou-se na cama, os ombros finalmente livres da postura de CEO. Vestiu um pijama de algodão antigo, apagou a luz do abajur e se deitou. Mas o sono não veio logo.
Na penumbra, o teto parecia mais distante que o normal. E no fundo da cabeça, havia aquela sensação estranha... como se alguém tivesse aberto uma janela onde sempre houve parede.
Lívia. Por que você me intriga tanto?
Fechou os olhos e deixou escapar um sorriso, involuntário, discreto, quase infantil. Um sorriso que ninguém no mundo veria.
E, com ele, adormeceu.
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O Dia Seguinte
O despertador tocou às 5h45. Clara levantou no ritmo automático, como uma máquina bem ajustada. Tomou banho, se arrumou com sobriedade: blazer cinza, salto escuro, cabelo preso. A mulher que o mundo veria.
Na cozinha, o café amargo e forte. O celular vibrava com mensagens e e-mails, mas ela os ignorou por um instante, observando o céu pela janela. Estava nublado — o tipo de céu que deixa o Rio com cara de São Paulo.
No escritório, chegou antes de todos. A sala estava em silêncio, com a luz fraca e o cheiro da madeira misturado ao perfume discreto que ela sempre usava.
Lívia chegou às 7h55, como nos outros dias. Vestia uma camisa azul clara e uma calça de alfaiataria preta. Cabelos meio soltos, meio presos. A passos firmes, passou pela recepção, cumprimentou quem encontrou e seguiu até sua mesa, logo ao lado da sala de Clara.
Organizou os papéis, abriu o notebook e começou a revisar a pauta da reunião do fim da manhã.
Às 8h10, Clara chamou:
— Lívia, entre, por favor.
A secretária entrou com uma pasta fina nas mãos e o rosto sereno, como sempre.
— Os arquivos estão organizados por setor, e deixei algumas anotações nas margens — disse, colocando a pasta sobre a mesa.
Clara folheou o material em silêncio. Quando terminou, olhou diretamente para ela.
— É eficiente. Gosto disso.
Lívia fez que sim, com leveza.
— É só o começo. Ainda estou aprendendo a lidar com o seu ritmo, mas chego lá.
Clara assentiu, escondendo o leve impulso de sorrir.
— E está lidando bem demais. Pode sair, obrigada.
Lívia virou-se para ir, mas parou na porta e falou sem olhar:
— Hoje a senhora está menos mandona. Será o café?
Clara estreitou os olhos.
— Ou será você que está ficando abusada demais?
— Talvez os dois — respondeu Lívia, já saindo da sala.
Sozinha, Clara balançou a cabeça, voltando ao seu computador com um leve sorriso que não durou mais que três segundos. Mas ele existiu.
— A Reunião
A manhã avançou em passos firmes até o momento mais esperado do dia: a reunião com os investidores internacionais.
A sala de conferências estava impecável. Mesa de madeira escura, telas conectadas, gráficos prontos para serem exibidos. Todos os diretores da Mendonça Beer Co. estavam presentes. Os convidados estrangeiros também. A tensão era visível em cada pequeno silêncio antes de alguém tossir ou beber água.
Clara entrou por último, vestida com a elegância e frieza de sempre, acompanhada por Lívia, que carregava pastas, pen drive e café.
A apresentação começou bem. Clara conduzia os números com autoridade, como quem domina cada vírgula. Mas, quando um dos investidores mais antigos — um francês analítico e meticuloso — fez uma pergunta sobre projeções de impacto ecológico da produção, Clara hesitou.
As palavras vieram lentamente, a mente tentando organizar dados que ainda não estavam na ponta da língua.
O silêncio se prolongou. Um desconforto sutil pairou no ar.
Foi quando Lívia, com voz calma, deu um passo à frente:
— O plano de sustentabilidade prevê redução de emissão em 12% até o segundo semestre do próximo ano, com reestruturação nas unidades do Sul e adequação ao ISO-14001, já em andamento.
Todos viraram-se para ela.
Clara também.
Lívia, com leveza, completou:
— O compromisso ambiental está entre as prioridades da CEO. Estamos trabalhando ativamente nesse ponto. Inclusive, é uma das metas do novo plano de rebranding da marca.
Os investidores assentiram, satisfeitos com a resposta. Um deles até sorriu.
A reunião prosseguiu. Clara retomou o controle, mesmo que com o coração ligeiramente acelerado — pela interrupção, pela ousadia. Mas, ao fim, o contrato foi fechado com sucesso. Um resultado importante. Um avanço concreto.
Os investidores se retiraram satisfeitos. A sala foi esvaziando, ficando apenas alguns diretores e funcionários próximos. Lívia ainda estava ali, recolhendo os materiais.
Foi quando Clara se virou e, diante de todos, disse, seca:
— Você ultrapassou um limite, Lívia. Falou por mim. Passou por cima da minha autoridade.
O silêncio que se instalou foi quase cortante. Alguns colegas desviaram o olhar. Outros congelaram.
Lívia parou. Respirou fundo. E respondeu, firme, mas com gentileza:
— Eu apenas fiz meu trabalho, Clara. Respondi com o que sabíamos. E firmamos um contrato importantíssimo para a empresa. Eu não roubei sua voz. Eu a protegi quando você hesitou.
Clara não respondeu. Apenas a olhou por um longo segundo — um olhar que misturava raiva, orgulho, e uma ponta de confusão que nem ela entenderia de imediato.
Então, virou-se e saiu da sala sem dizer mais nada.
Lívia permaneceu ali, com o olhar sereno e a coluna ereta.
Assim que a porta se fechou, um dos diretores — Carlos, do jurídico — murmurou:
— Você é louca. Ninguém jamais enfrentou Clara assim.
— Vai ser demitida amanhã cedo — disse outro.
Mas uma das gestoras de marketing, jovem e corajosa, bateu levemente no ombro de Lívia e sorriu.
— Ou vai ser a primeira a fazer essa mulher repensar a vida inteira dela.
Houve algumas risadas nervosas. Alguns acenos de cabeça respeitosos.
Lívia guardou os papéis, silenciosa, e saiu da sala com a mesma calma com que entrou. Mas por dentro, sentia a tensão que ainda pairava — e a certeza de que, dali em diante, nada mais seria como antes.
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Atualizado até capítulo 46
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