— NATHALIE / DEZIRÊ —
A noite caiu sobre Paris como um véu pesado. Lá fora, o som das rodas das carruagens e carros misturava-se aos passos apressados de quem fugia do frio. Nathalie observava a rua pela janela, a rosa vermelha já murchando no vaso. Era curioso… algumas coisas pareciam vivas por fora, mas já estavam mortas por dentro.
Sentou-se à penteadeira com gestos calculados. A luz amarelada da luminária projetava sombras em seu rosto. Pegou o batom escuro, encostou nos lábios e hesitou. Aquela não era uma maquiagem qualquer — era um ritual. Um corte entre o que se vê e o que se esconde.
Do guarda-roupa, tirou o vestido preto com decote discreto. O tecido era antigo, da mãe. Ajustado por Rosélie, ainda tinha cheiro de lavanda envelhecida. Calçou sapatos de salto baixo, prendeu o cabelo num coque firme e colocou o colar de pérolas com as mãos pálidas devido ao frio.
No espelho, Nathalie desaparecia aos poucos. Restava outra.
— Dezirê. — murmurou, como se estivesse apresentando uma estranha a si mesma.
Desceu as escadas em silêncio. O pai ainda não havia voltado. Como sempre, Paris o engolia até tarde. No hall, Rosélie apareceu com os olhos arregalados.
— Vous partez, mademoiselle?
— Ce soir… je suis autre chose. — respondeu, já saindo pela porta.
As ruas estavam úmidas, as vitrines ainda acesas. Ela seguia em passos firmes, mas com o coração descompassado. Sabia o que fazia, mas não com quem se tornava. O barulho dos saltos ecoava entre os prédios como um anúncio silencioso: algo mudou.
Chegou ao café da Rue Blanche. Um lugar pequeno, discreto, frequentado por artistas, escritores e figuras da noite. Todos ali pareciam guardar segredos — era o tipo de lugar onde ninguém pergunta o nome. Perfeito.
Entrou como se já fosse parte do cenário. Tirou as luvas devagar, pediu vinho tinto e se sentou perto do piano. O garçom não questionou. Apenas serviu.
— Vous êtes nouvelle ici? — perguntou uma voz grave, sentando-se à mesa ao lado.
Ela ergueu os olhos. Um homem de meia-idade, sobretudo escuro, olhar afiado.
— Talvez. — respondeu. — Ou talvez eu só tenha mudado de pele.
— Et votre nom?
Ela sorriu. Um sorriso que não era de Nathalie. Era cortante.
— Dezirê.
A palavra pairou no ar como fumaça de cigarro. O homem ergueu o copo, curioso. Ela desviou o olhar. O piano começou a tocar algo suave. No canto do salão, um jovem a observava. Tinha olhos atentos demais para alguém desinteressado. Ela percebeu. Gostou da tensão.
Ali, no meio dos desconhecidos, era mais fácil existir.
Mais tarde, ao sair, o vento cortava como navalha. Dezirê passou por uma banca de jornal fechada. Uma manchete rasgada tremulava ao vento: "Assassinato ou suicídio? Polícia silencia caso de herdeira desaparecida."
Ela sorriu. O mundo gritava mistérios, e ela estava pronta pra respondê-los — à sua maneira.
Caminhou devagar, como se marcasse território.
Nathalie já não voltava pra casa naquela noite.
Quando chegou no beco que dava acesso à ruela dos fundos, ouviu passos. Discretos. Rígidos. Parou por instinto. Não era mais Nathalie. Dezirê prestava atenção.
— Vous êtes perdue, madame? — perguntou um homem de sobretudo claro, saindo da sombra.
Ela não respondeu. Apenas ergueu o queixo e encarou. Um segundo. Dois.
— A senhora está longe do Palais-Royal... — ele disse, com um sorriso torto.
— E você está longe demais da verdade. — ela rebateu, e continuou andando.
Atrás de si, o som dos passos cessou. Mas ela sabia: Paris era cheia de olhos. E agora, ela começava a ser como uma gatuna.
Já em casa, tarde da noite, trancou a porta do quarto com firmeza. Retirou os brincos, os sapatos, o colar. Mas o olhar… esse não saiu mais.
Abriu a gaveta do criado-mudo. Um caderno de capa vermelha, antigo, surrado. Nele, escreveu:
"Dezirê nasceu esta noite. Ela não chora. Ela observa."
Debruçou-se sobre o papel, sentindo a vibração da cidade sob seus pés. Ainda podia ouvir a música do piano, como se um pedaço dela tivesse ficado lá, naquele café empoeirado.
Amanhã, Nathalie voltaria. Fingiria ser apenas a filha do arquiduque. Frequência das boas maneiras, sorrisos medidos e jantares longos.
Mas hoje?
Hoje ela era livre.
Horas depois, já deitada, escutou um som vindo do corredor. Um envelope deslizou sob a porta. Papel bege, sem remetente.
Ela sentou-se devagar, o coração voltando a bater como Nathalie — vulnerável, jovem, sem escudo.
Abriu.
Lá dentro, apenas uma foto: o rosto de uma mulher, machucado, olhos abertos.
E uma frase escrita à mão:
“Você não é a única que usa máscaras.”
Dezirê encarou a imagem por longos minutos.
— Então o jogo começou...
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Atualizado até capítulo 24
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