Era um daqueles dias em que o céu parecia chorar por todos que viviam esquecidos. A chuva batia forte nas janelas do orfanato, e as crianças estavam todas reunidas no refeitório, tentando se aquecer com copos mornos de chá ralo. De repente, o som de pneus na lama chamou atenção. Um carro preto, reluzente, com vidros escurecidos, parou em frente ao portão de ferro.
As cuidadoras se agitaram, arrumando os uniformes das crianças mais apresentáveis e mandando as outras se esconderem nos quartos. Visitas importantes exigiam fachada. E aquela era muito especial. A família Valmont, conhecida na cidade pelos grandes empreendimentos imobiliários e pelas aparições constantes em colunas sociais, vinha fazer uma "ação social". Mas Ícaro sabia que essas visitas eram mais sobre imagem do que empatia.
Mesmo assim, ele ficou curioso. Se escondeu atrás de uma pilastra próxima à entrada. De lá, viu quando desceu do carro o Sr. Arthur Valmont — um homem alto, cabelo grisalho impecável e olhar firme. Ao lado dele, a Sra. Helena Valmont, elegante, com um vestido bege e um colar de pérolas. Mas o que mais chamou atenção de Ícaro foi a menina que veio atrás dos dois: Elisa.
Elisa devia ter uns 12 anos, pouco mais velha que ele. Tinha cabelo castanho claro, preso em um rabo de cavalo simples, e olhos grandes, curiosos. Enquanto os pais falavam com o diretor do orfanato, ela se afastou e começou a olhar ao redor, claramente entediada com o protocolo. Foi nesse momento que seus olhos cruzaram com os de Ícaro. Ele, meio escondido, não desviou o olhar. Pelo contrário: encarou firme, como se estivesse tentando ler a alma dela.
Elisa franziu o cenho, depois sorriu levemente e acenou com a mão. Ícaro não respondeu. Só ficou parado, curioso. Ninguém nunca tinha olhado pra ele daquele jeito. Não com pena, nem com nojo. Ela o olhou como se ele fosse... interessante.
Mais tarde, durante o lanche servido pela visita, Elisa se aproximou de Ícaro. Enquanto todos se empanturravam com os biscoitos caros e sucos de caixinha que raramente viam, ela puxou conversa:
— Você é o mais velho daqui? — Não. Mas sou o mais esperto. — respondeu Ícaro, sem sorrir. Ela riu. — Modesto, hein? — Só realista.
E assim começou uma conversa inesperada. Eles falaram de livros, de filmes (que Ícaro só conhecia pelos cartazes que via nas bancas), de cidades grandes. Elisa ficou impressionada com o vocabulário dele e com o jeito direto. Ícaro, por sua vez, ficou fascinado com as histórias de viagens, com a forma como ela descrevia Paris como se fosse a pracinha da esquina.
Quando os Valmont foram embora, Elisa olhou para trás e acenou novamente. Dessa vez, Ícaro retribuiu com um aceno discreto. Algo ali tinha sido plantado. Uma semente. Um começo.
Aquela noite, Ícaro não dormiu. Sentado na cama, olhava para o teto, repetindo mentalmente o sobrenome "Valmont" como se fosse uma senha mágica. Ele não sabia como, nem quando, mas sentia que seu destino estava ligado a aquela família.
E ele faria o que fosse preciso para fazer parte daquele mundo.
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Atualizado até capítulo 22
Comments
Gemma
Que história incrível, estou totalmente envolvida!
2025-07-21
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