Capítulo 2

O apartamento estava mergulhado na penumbra quando Lia entrou. Largou a jaqueta sobre o sofá, chutou os sapatos e ficou ali, parada, no silêncio. O celular piscava em cima da mesa. Três chamadas perdidas de Miguel. Ela ignorou.

Abriu a geladeira, pegou um pote com sopa do dia anterior. Aquecia lentamente enquanto encarava a janela. Do lado de fora, a cidade respirava. Por dentro, ela afundava.

O micro-ondas apitou. Lia serviu-se mecanicamente. Sentou-se à mesa sem arrumar nada, sem acender mais luzes, sem tocar no telefone. O primeiro gole queimou sua língua. Ela não reagiu. Sentia-se exausta — não de cansaço físico, mas daquela exaustão que escorre pelas rachaduras da alma.

Miguel. Sempre Miguel.

Gentil aos olhos de todos, mas ausente quando mais importava. Ele sabia ferir com doçura, calar com elogios, sufocar com a própria presença.

A cada colherada, Lia pensava em como era possível se sentir tão vazia depois de um dia tão cheio. A cozinha fervia, o restaurante lotava, os pratos saíam — perfeitos, como exigia. Mas, quando voltava pra casa, o barulho do mundo cedia lugar a um vazio ensurdecedor.

Terminou de comer sem fome. Lavou a tigela. Secou as mãos devagar, como se atrasasse o inevitável: dormir e acordar para mais um dia igual.

Antes de ir para o quarto, parou em frente ao espelho do corredor. Olhou o próprio reflexo, mas não se reconheceu. Viu a chefe — forte, precisa, temida. Mas onde estava a mulher? Aquela que, um dia, sonhou com mais do que controle e prêmios?

Encostou a testa no espelho. Fechou os olhos. Respirou fundo.

No dia seguinte, o La Belle abriria novamente. E Lia colocaria de novo o avental, o olhar afiado e o tom de voz que afastava os fracos.

Mas hoje, só por alguns minutos, permitiu-se ser silêncio.

 No dia seguinte

O relógio marcava 10h45 quando Lia entrou pela porta dos fundos do La Belle. O café em sua mão tremia levemente, e não era por causa do frio.

Maria já estava picando cebolas com precisão, Pedro organizava os ingredientes do dia na bancada, e Diogo mexia distraidamente um molho ainda frio.

Lia — Vamos, pessoal. Sem ritmo lento hoje. O almoço de quarta costuma enganar.

(Ela largou o casaco na cadeira e amarrou o avental com um puxão seco.)

Pedro — Bom dia, chef.

Lia — Bom será se não me fizerem passar vergonha.

O comentário caiu como gelo sobre a cozinha. Maria trocou um olhar rápido com Pedro. Diogo continuou mexendo o molho sem erguer os olhos.

Lia — Maria, revisa os legumes da salada morna. Quero tudo crocante, nada de purê disfarçado.

Maria — Sim, chef.

Lia — Pedro, não te esqueças de tirar os pães no forno. Trinta minutos, não mais.

Pedro — Já tá no cronômetro.

Ela se aproximou da bancada de Diogo.

Lia — E você?

Diogo (sem encará-la) — Preparando o molho de pistache pro filé.

Lia — Que tal fazer direito hoje?

Diogo respirou fundo, engolindo o que queria responder.

Diogo — Vou fazer o melhor que posso.

Lia — O seu “melhor” custou a reputação do prato ontem. Não repita.

Ela se afastou, e o ritmo da cozinha voltou a fluir — denso, preciso, com tensão a cada gesto.

Pouco depois do meio-dia, Pedro entrou pela porta que dava para o salão, olhando por cima do ombro como se carregasse uma notícia estranha.

Pedro — Mesa dois. Cliente nova. Sozinha. Pediu o menu completo. E quer o vinho branco seco pra acompanhar a entrada.

Lia — Algum pedido especial?

Pedro — Nenhum. Mas… ela anota tudo num caderninho. Disfarçado num livro. E fica olhando muito. O salão, os talheres, o tempo dos pratos... tudo.

Lia — Anotando?

Pedro — Anotando.

Lia não respondeu. Foi até a fresta da porta da cozinha e espiou.

Uma mulher sentada elegantemente à mesa, de costas retas, olhar atento. Nada no rosto dela revelava pressa ou nervosismo. Estava ali com um propósito — e parecia saber exatamente o que procurava.

Maria (sussurrando) — Cliente crítica?

Lia — Críticas não avisam. Mas essa não veio só pra almoçar, com certeza.

Uma hora depois...

Pedro se aproximava novamente da cozinha com passos cuidadosos, quando Lia cruzou com ele na porta.

Lia — Ela ainda está lá?

Pedro — Está. Pediu um espresso. Mas... disse que gostaria de falar com a chef.

Maria — Ela pediu você, Lia.

Lia (fria) — Então vamos ver o que ela tem a dizer.

Lia tirou o avental com um movimento rápido, limpou as mãos num pano de linho e caminhou para o salão, com os ombros erguidos como se carregasse armadura.

Isabella estava sentada com as pernas cruzadas, o café diante dela e o guardanapo dobrado com precisão ao lado do prato limpo. Quando viu Lia se aproximar, sorriu com aquele mesmo ar de quem já sabe a resposta antes da pergunta.

Lia — A senhora pediu para falar comigo?

Isabella — Pedi, sim. Queria agradecer pela refeição... e comentar pessoalmente.

Lia (formal) — Agradecemos a visita. Espero que tenha sido agradável.

Isabella — Foi. A entrada estava primorosa. A escolha das folhas, o equilíbrio do cítrico. Um começo promissor.

Lia apenas assentiu. Esperava pelo “mas”.

Isabella — Mas... o prato principal perdeu a mão. Textura inconsistente. A crosta gritava mais que a carne.

(Ela bebe um gole do café, sem desviar os olhos.)

— Não é algo que se espera de uma cozinha com um começo tão promissor.

Lia — O prato foi executado por um dos membros da equipe. Ainda estamos ajustando a mão de alguns deles.

Isabella (arqueando uma sobrancelha) — Sim, eu percebi. Mas o problema não foi só de quem cozinhou... foi de quem aprovou antes de servir.

Um silêncio seco se instalou por um segundo. Lia manteve o rosto impassível, mas a mandíbula se contraiu sutilmente.

Lia — Todos os pratos passam pelo meu controle. Mas nem sempre conseguimos agradar a todos os paladares.

Isabella — Claro. Ainda mais quando o paladar em questão é exigente.

(Ela se inclinou levemente, o tom mais brincalhão, quase provocador.)

— Você não gostou do que eu disse, não é?

Lia (seca) — Tenho uma cozinha para gerenciar. Não costumo discutir com clientes.

Isabella — Eu não vim discutir. Vim observar. E... sentir.

(Ela apoiou o queixo na mão, estudando Lia como quem analisa uma tela inacabada.)

— A sua cozinha tem técnica. Mas você… você parece cozinhar para se defender. Como se cada prato fosse um escudo.

Lia deu meio passo para trás, como se estivesse prestes a cortar a conversa.

Lia — Com licença. Preciso voltar ao trabalho.

Isabella — Naturalmente. Mas, só por curiosidade... qual prato você salvaria, se tivesse que escolher?

Lia hesitou.

Lia — O gravlax.

Isabella (sorrindo, satisfeita) — Também salvaria você.

(Ela terminou o café, pousou a xícara com leveza e se levantou.)

— Obrigada pelo almoço, chef. Foi... revelador.

Lia a observou sair com passos seguros. Só quando Isabella passou pela porta foi que ela soltou o ar preso nos pulmões.

Maria se aproximou do balcão com olhos curiosos.

Maria — E aí?

Lia — Era ela.

Pedro — A crítica?

Lia — Sim. E pior... ela fala como se enxergasse dentro da gente.

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