o dia q meu mundo girou pela primeira vez

Rio de Janeiro, primavera de 1803.

Naqueles tempos, o Brasil ainda era colônia de Portugal. Os nobres por aqui seguiam os moldes da corte europeia com tanto rigor quanto podiam: bailes, títulos herdados, alianças por casamento e, acima de tudo, aparências. Era assim que os salões se mantinham iluminados mesmo sob o calor úmido dos trópicos. Os senhores de terras, muitos deles descendentes de fidalgos portugueses, vestiam seus casacos de brocado enquanto abanavam-se discretamente com lenços perfumados. As senhoras andavam como cisnes entre os salões, em vestidos vindos da França ou adaptados por costureiras locais, os sorrisos contidos sob leques de renda e olhos sempre atentos aos pretendentes em potencial.

A cidade do Rio de Janeiro ainda era pequena, mas fervilhava com movimentações da aristocracia rural e da elite comercial. As ruas eram de pedras irregulares, os casarões tinham janelas altas, portas de madeira talhada e varandas de ferro trabalhado. E embora o povo simples andasse a pé pelas ladeiras, os nobres deslizavam em carruagens importadas ou construídas por artesãos lusitanos com madeira nativa. A vida social era vivida em torno da igreja, dos bailes privados e, ocasionalmente, em eventos públicos promovidos pelos governadores da Coroa.

Foi nesse cenário — cheio de regras veladas, aparências importantes e sorrisos treinados — que minha infância se moldou.

Na primavera de 1803, eu tinha doze anos. A brisa do mar batia nos coqueiros altos ao redor da propriedade de minha família, que ficava um pouco afastada do centro, num vale ensolarado com vista para a baía. Era o dia do casamento de minha irmã mais velha, Joyce Nunes, filha do Duque José Nunes com a Duquesa Ângela.

Joyce era o orgulho da família. Tinha os cabelos escuros, olhos determinados, a postura de uma dama treinada desde o berço e uma beleza silenciosa que impunha respeito. Meu pai dizia que ela era mais racional que ele próprio — e minha mãe, mesmo rígida em seus modos, deixava escapar um sorriso a cada vez que Joyce entrava num salão.

Aquela tarde era dela.

Os criados haviam decorado a casa por dias. As cortinas eram de linho branco, as fitas nas colunas cor de lavanda, e as flores — muitas delas colhidas do próprio jardim — estavam dispostas em arranjos altos sobre colunas de madeira clara. A cerimônia foi na capela da propriedade, adornada com veludo azul e prata. O coral, treinado pela governanta francesa da casa, soava como um sopro divino.

Aos meus olhos de menina, tudo parecia mágico. Até mesmo o chão de pedra polida parecia refletir a luz com mais força.

Joyce vestia um modelo de cetim branco com bordados dourados, mangas longas de renda e uma cauda tão longa que duas criadas se revezavam para segurá-la. O penteado, alto e preso com pérolas, deixava seu pescoço à mostra com delicadeza. Ela caminhava ao som de um violino, de braço dado com meu pai, e parecia flutuar.

Ao seu lado no altar, estava Daniel Souza — agora, Duque Souza — um homem alto, com a pele queimada de sol, ombros largos e um sorriso franco. Era impossível não simpatizar com ele. Sempre atencioso comigo, nunca me tratou como a irmã menor inconveniente. Eu o adorava, ainda que na época não entendesse bem por quê.

O casamento foi por amor. Isso, naquela época, era um luxo raro.

Enquanto as palavras do padre ecoavam pela capela, fui arrastada para o salão ao lado onde os músicos já afinavam seus instrumentos e os convidados circulavam. Minha mãe me arrumara como se eu fosse uma boneca de porcelana — com um vestido cor de chá de pêssego, luvas curtas e uma fita branca nos cabelos castanho-claros. Eu me sentia bonita, embora um pouco insegura entre tantos adultos.

Foi então que o vi.

Encostado próximo a uma das grandes janelas do salão, havia um menino de minha idade — talvez um pouco mais velho. O cabelo era negro como tinta fresca, os olhos baixos, e os ombros levemente curvados, como se quisesse desaparecer. Mas algo nele me chamou a atenção. A roupa estava impecável: colete azul-escuro, camisa branca engomada e botas recém-polidas.

Ele não falava. Não sorria. Apenas observava.

E então, ele me olhou.

Aquele olhar me atingiu como uma brisa súbita — e meu coração, que até então nunca havia sentido nada parecido, disparou. A sensação era quente, desconfortável e deliciosa ao mesmo tempo. Ninguém havia me olhado assim antes. E eu não conseguia olhar para outro lugar.

Ele desviou primeiro. Mas o encanto ficou.

Mais tarde, descobri o nome dele: Jordan. Sua família era recém-chegada de São Paulo, parte de uma linhagem de marqueses respeitados. Ele seria apresentado aos círculos locais ao longo do ano, mas naquela noite, para mim, ele já era inesquecível.

Naquela noite, sem saber, meu coração começou a construir uma história que nem o tempo, nem os segredos, nem as regras do mundo conseguiriam apagar.

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