O relógio marcava 03:12 da manhã. A cidade dormia lá fora, mas o hospital parecia em chamas. O corredor da emergência estava tomado por sirenes abafadas, vozes apressadas, e aquele cheiro de sangue fresco que grudava na pele e na alma.
— Politraumatismo. Paciente feminina, 10 anos. Atropelamento. Sem acompanhante. — anunciou um paramédico.
Meus pés se moveram antes mesmo do cérebro processar. Uma criança.
A menina foi jogada contra o chão da realidade sem sequer entender o que aconteceu. Frágil. Inconsciente. Pulsação fraca. Olhos fechados. O rosto manchado de terra, cabelo grudado de suor. Lembrei da minha irmã. Lembrei de mim.
Engoli seco.
— Vamos! Preciso de um ultrassom FAST, raio-x de tórax e estabilização imediata da cervical! — ordenei.
Enquanto a equipe se movia, tudo em mim implorava para não falhar. Porque aquela menina tinha olhos como os meus quando era pequena. Olhos que já tinham visto mais dor do que deveriam.
A cirurgia durou quatro horas.
Ela sobreviveu.
Mas alguma coisa em mim... não.
Quando tudo terminou, minhas mãos ainda sujas de sangue, saí pela porta lateral do hospital. O ar gelado da madrugada não adiantava. Eu ainda queimava por dentro.
Segui andando pelas ruas próximas ao hospital. A cidade parecia um cenário de filme antigo, silenciosa demais. Sentei-me no banco de uma praça vazia. Ali, finalmente, deixei cair a armadura.
E foi quando ouvi passos.
Ergui o olhar. Ele.
Guilherme Montenegro.
Sem terno. Casaco escuro, cachecol solto no pescoço. Cabelo bagunçado pelo vento. Nenhum traço do CEO. Apenas um homem. E, talvez, um pouco de cansaço nos olhos.
— Eu te procurei no hospital — disse ele, sem cerimônia.
— Eu precisava respirar. — minha voz saiu fraca.
Ele assentiu, sentando-se ao meu lado. Não disse nada por um tempo. Apenas olhou adiante.
— A menina vai sobreviver — sussurrei, como se dissesse isso a mim mesma.
— Mas você está sangrando por dentro.
Me virei para ele. A frase era exata demais. Invasiva demais.
— Você não me conhece.
— Conheço o silêncio no fim de uma guerra. Eu também já sentei em bancos como esse.
Fechei os olhos. O vento batia no rosto, carregando uma dor que eu tentei esconder a noite inteira. Por um momento, deixei que o silêncio falasse por mim.
— E o que faz passar? — perguntei.
Ele virou o rosto na minha direção. A voz veio como um sussurro grave:
— Alguém que fique. Mesmo quando tudo está desabando.
Eu o encarei. Por dentro, tudo em mim gritava para recuar.
Mas pela primeira vez... não me senti sozinha
Ficamos ali, em silêncio. Como se qualquer palavra pudesse estragar o que estava acontecendo. Não era conforto. Nem atração. Era reconhecimento. Dois estranhos que, de algum modo, se viam no espelho um do outro.
— Você sempre aparece quando eu estou prestes a desmoronar? — perguntei, a voz arranhando na garganta.
Ele soltou uma risada baixa, sem humor.
— Só reconheço os lugares onde já estive.
Meus olhos o buscaram no escuro. A luz tênue do poste projetava sombras no rosto dele. Um rosto marcado não apenas pelo tempo, mas por algo mais profundo. Culpa, talvez.
— E onde já esteve, senhor Montenegro?
Ele respirou fundo. Desviou o olhar. Pela primeira vez, vi a muralha tremer.
— Em lugares que não desejo a ninguém, doutora. Lugares onde o sucesso não compensa o que se perde.
Havia dor naquela frase. Uma ferida ainda aberta.
— E mesmo assim... ainda está lá?
Ele me encarou, sério. Como se eu tivesse tocado num ponto onde ninguém mais tocava.
— Talvez. — respondeu. — Ou talvez eu só tenha me acostumado a andar entre os escombros.
Ficamos em silêncio de novo. Mas dessa vez, era um silêncio confortável. Quase necessário.
Meu celular vibrou. Uma mensagem da equipe da emergência.
“Paciente estável. Transferida para UTI pediátrica.”
Respirei aliviada.
— Eu preciso voltar — disse, me levantando.
Guilherme se levantou também. Ficamos frente a frente. Próximos demais. Havia uma tensão estranha no ar — não sexual, não romântica, mas algo mais denso. Uma ligação de almas feridas.
— Obrigada — falei, quase num sussurro. — Por... estar aqui.
Ele hesitou por um segundo. E então, sem aviso, tirou uma pequena correntinha do bolso. Simples, de prata, com um pingente discreto de estrela.
— Minha filha me deu isso antes de... — a voz dele falhou, por um instante —... antes de ir. Ela dizia que era pra quando eu me sentisse sozinho demais.
Fiquei sem reação. Ele segurou minha mão e colocou a corrente nela.
— É só por essa noite. Até você conseguir respirar sozinha.
Eu queria devolver. Queria dizer que não precisava. Mas não consegui.
Apenas fechei os dedos ao redor do pingente e assenti.
Enquanto voltava para o hospital, sentia o frio cortando meu rosto, mas havia algo diferente dentro de mim. Um calor estranho. Um nó no peito.
E a certeza de que eu nunca mais veria Guilherme Montenegro da mesma forma.
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Atualizado até capítulo 111
Comments
Zenide Reis
comecei agora ler o livro já estou amando
2025-05-08
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